Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.
Matilda era impulsiva, volúvel e da cor amarela indomável que rechaça todo tipo de atenuação e transborda da
tela onde o pintor tenta enclausurá-la com outras nuanças. Ia de um extremo a
outro, de borboleteira a beatlemaniaca. Com a mesma inflexibilidade da cor da gema que
substituiu os besouros bretões pelas borboletas tropicais, Matilda abandonou estas
últimas bisonhamente emolduradas nas paredes de sua casa e passou a perseguir
óvnis, estes objetos não identificados chamados discos voadores. A escolha dessa
nova presa deveu muito ao livro de Eric Von Daniken, Eram Os Deuses Astronautas,
que abriu novos horizontes perdidos para Matilda, e do segundo livro desse autor,
As Provas De Daniken, para o primeiro sobre os misteriosos óvnis, A Verdade
Sobre Os Discos Voadores, de Donald E. Keyhoe, foi um salto rápido e previsível
no abismo. Em menos de dois anos, Matilda já era bem versada sobre o assunto e
ainda teve um contato imediato do terceiro grau com o Dr. Allan Hynek, um
astrônomo considerado a autoridade mais respeitada da época nos meios da mais
nova pseudociência e que trabalhou quase duas décadas num projeto secreto da
força aérea da terra dos libertos chamado livro azul que tinha por objetivo
investigar se alguém ou alguma coisa estava invadindo o espaço aéreo
americano. O encontro com o
criador das primeiras categorizações ufológicas e que foi convidado por Steven
Spielberg como consultor no seu filme ET, ocorreu em São Paulo, e no
terceiro e último dia das palestras deste renomado ufólogo, Matilda conseguiu
abordá-lo nos bastidores para lhe pedir um autógrafo e não perdeu a oportunidade
para fazer a clássica pergunta de quem deseja acreditar em algo, mas que precisa
de um ser superior para sancionar sua nova crença: Sim, eles existem, mas eu estaria mentindo se eu lhe dissesse
de onde vêm, pois ninguém sabe nem mesmo o que eles são, respondeu o Dr.
Hynek. A resposta não contribuiu muito para as
expectativas messiânicas de Matilda, mas não impediu os seus esforços jesuíticos
de catequização tal qual a primitiva igreja cristã que prometeu aos seus fiéis
que a sua geração testemunharia o retorno de Jesus, mas como ele não apareceu,
tratou de preparar suas comunidades para uma segunda vinda do cristo num tempo a
perder de vista e a recomendar prudência e vigilância porque ninguém mais sabia
o dia e a hora do temido dia da volta do filho do deus terráqueo. Ainda que esse
deus assim como os alienígenas permanecessem em seus altivos pedestais e fora do
alcance dos olhos de Matilda, esses óvnis pareciam estar dando sinais de
aproximação a várias pessoas em todo o mundo e o que causava fascínio em Matilda era o fato de ainda não se saber, oficialmente, o que eles eram e isso a impelia
a fazer prosélitos pelo simples prazer de impressionar as pessoas e não
necessariamente para suprimir suas próprias incertezas mediante a propagação de
suas ideias. Matilda sempre era movida por desafios e novidades e os óvnis eram um
modismo que a fez se sentir tão próxima de deus como nunca estivera antes. Ela passou a nutrir sentimentos de grandiosidade, desejosa de ser uma pessoa
diferenciada e privilegiada, detentora de uma revelação a ser dividida com
poucos e pregava como um João Batista preparando o caminho dos seres cinzas e
endireitando suas veredas para o encontro final. Para manter o astral elevado, Matilda vivia cantando a música Calling Occupants Of Interplanatery Craft, dos Carpenters, reconhecida pelos novos cultistas como o hino oficial do dia mundial
do primeiro contato entre os símios do planeta terra que andam sobre duas patas
e os ultra-emissários interplanetários. Mas Matilda não se contentava em confinar
seu ímpeto precursor numa área tão distante e isolada como a ribeira do Jordão e
ampliou suas audiências perigosa e pateticamente para todas as esferas sociais.
No primeiro dia de seu novo emprego, ela ocupou os noventa minutos do horário do
almoço fazendo uma síntese do fenômeno ufológico e deixou suas novas colegas
indagando como ela teria conseguido passar no exame psicotécnico. No velório de
sua avó ela conseguiu roubar a atenção de uma rodinha de contadores de piadas
por quase duas horas. Com o passar dos anos e com
os óvnis cada vez mais mostrando indícios de que eles não eram projeções das
mentes humanas, mas, ao contrário, os humanos eram as projeções deles, o
interesse de Matilda pelos extraterrestres passou para um segundo plano, diminui,
esmaeceu, descorou aos poucos, assim como o amarelo que segue sua tendência
natural ao claro e guarda uma afinidade intensa e física com o branco, como bem
observou o artista e teórico abstrato Wassily Zandansky. A volatilidade de Matilda a levava a migrar para qualquer tom, sem baldeações e sem gradações, com a mesma
disposição que ela tinha para sair de um estado de profunda melancolia para
outro de puro êxtase. Sua inclinação à alvura, em particular, era ambivalente,
como o positivo do retrato de sua alma, mas negativamente carregada de todas as
misérias humanas resgatadas de volta a uma caixa de Pandora, e recomposta de
todas as cores do espectro devolvidas à sua fonte original através do mesmo
prisma que as separaram, transformando-o na cor que não representa apenas a
ausência de cores ou a soma de todas elas, mas também uma contraposição ao nada
que é gelado, escuro e assustadora e desproporcionalmente maior do que o
insignificante todo para o homem, essas pedrinhas luminosas e solitárias que
salpicam o breu sem-fim. Matilda se desviava para o branco não porque ela fosse
pura, pois nem mesmo seus terapeutas tinham acesso ao seu lado sombrio, e nem
porque fosse uma pacifista por convicção, mas por conveniência, pois sua apologia
a não violência era apenas um simulacro para camuflar sua paura, daí o fato de
sua face parecer estar invariavelmente pálida de sobressaltos. Ao sabor das
monções e em atrito com infortúnios, Matilda empreendia odisseias como um Ulisses
retirante, instigada a sair em busca de aventuras, como se o destino não
permitisse que sua vida tivesse interstícios ou sofresse solução de
continuidade, sempre lhe aflorando uma nova veneta logo que uma velha começasse
a minguar. Por onde andava Matilda ainda carregava consigo seu acervo de relatos
sobre visitantes de outros cantos do universo e quando a ocasião se oferecia,
por estar na entressafra e por falta do que falar, ela entortava novos incautos
com as mesmas histórias, agora não mais com o mesmo entusiasmo amarelo e
contagiante, mas apenas com uma centelha esbranquiçada e nada interessante. Um
desses novos imprudentes não se empolgou nem um pouco com suas fábulas, mas se
apaixonou por ela e logo se tornou seu novo cristo, mais tarde apelidado por Matilda de Mensageiro da Enganação, um nome inspirado no título de um livro do ufólogo
Jacques Vallee. Como acontece com todos os filhos do homem, Matilda passou
por várias fases na vida, cada uma delas de duração variável e marcada por uma
profusão de opiniões, interesses, vícios e credos que são despudoradamente
jogados na privada de tempos em tempos deixando menos vergonha do que fedor. Mas Matilda sempre precisou de um eixo em torno do qual suas manias efêmeras e
cíclicas pudessem orbitar elipticamente como um asteroide que não se importa
quão longe ele possa às vezes estar de sua estrela mãe contanto que ela
permaneça sempre lá, no mesmo lugar, sempre lançando luz sobre sua trajetória e
mantendo sua cauda alinhadamente para trás tal qual seus cabelos acariciados pela brisa do mar. Este
centro gravitacional era um ponto de referência, um alguém que estivesse à sua
altura em termos relativos, e abaixo dela e de deus em termos absolutos. Um tipo
de guru não charlatão que desse mais do que validez às suas opiniões e ainda se
prostrasse aos seus pés como uma divindade submissa. Não um líder que escolhesse
sua meta e a conduzisse até ela, non ducor, duco, ou um conselheiro que
sugerisse mudanças nos seus planos, ou um guia ou um orientador que lhe
mostrasse o caminho, mas apenas uma diva que tivesse pelo menos algo em comum
com ela, que tivesse um conhecimento geral aparentemente parco e que a motivasse
a superá-lo, deixando-a ser o centro de suas atenções, ouvindo-a, admirando-a e
engrandecendo-a e, ainda que pudesse ser autônoma para arrebanhar seus próprios
admiradores, deveria se resignar com o papel de figurante para que Matilda se
sobressaísse como a atriz principal. Tal potestade podia ser filho de homem
nascido de mulher, mas de natureza glamorosa, como a Miranda Priestly da moda
cuja opinião é a única que importa, e deveria se apequenar sob a sombra de Matilda e ser pega para seu cristo particular, como o Personal Jesus do Depeche Mode. Matilda tinha ciúmes desmesurados dessas divindades e se melindrava a ponto de
mandar tomar banho até mesmo seus familiares se estes lhe furtassem seu tempo
com elas ou desviassem suas atenções para outras pessoas. Se suas deidades
morressem, morreriam também todas suas motivações correspondentes ao período que
atravessava e com elas Matilda podia se afogar como um salva-vidas despreparado
que é levado para o fundo da água pelos braços fortes de um desesperado. Matilda tinha dificuldades crônicas para se livrar da dependência destas divindades,
como um viciado inveterado que só consegue deixar as drogas com ajuda médica e
ao custo de muito sofrimento. Só mesmo o tempo, o remédio que não faz mais
efeito e a visão de uma nova imagem primitiva permitia que uma déia dessas fosse
milagrosamente largada no esquecimento, num ostracismo involuntário. Na infância
e na adolescência Matilda teve um cristo chamado Joe Citadino que nunca entendeu a
indiferença e o desprezo de Matilda por conta do seu total desconhecimento das
sequelas deixadas pelo abalo emocional e incurável que ela sofreu na juventude e
que dividiu sua vida em duas: antes e depois do colapso. E assim como Estragon e Vladimir de Samuel Beckett esperaram pelo amigo Godot que não apareceu e concordaram em ir embora mas não esboçaram nenhum
movimento, Matilda morreu sem ver seu disco voador e suas duas vidas nunca saíram do
lugar.