quarta-feira, 26 de junho de 2024

SOLDADOS SINTÉTICOS

Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.  

De vez em quando, Ainda vejo no espelho, A alma de menino em meus olhos, E quase sempre o reflexo de cabeça branca, Carquilhas demarcando as fronteiras do rosto, Os ombros um pouco retacos, Como negro acostumado a bolear o fardo da vida, As sacas de café e batatas nos ombros portuários, E aos poucos, As madeixas vão lentamente se perdendo, Preparando-se para setenta e uma primaveras, Mas ainda não para serem assentadas, Meu coração ainda fervente, Mantém membro e bagos em elevada temperatura, Com poucos cabelos na mão, De meu amor a paixão em latente ardência de verão de Fevereiro, De sol, Praia e suores, Penetra-lhe com suave calor suas carnes, Como de braceletes o ouro em brilho quente, Morde-lhe com volúpia seus lisos braços, Domina-lhe os nervos, Entra-lhe como vento por uma janela largada aberta, Sacode-lhe frouxamente as cortinas, Até que um dilúvio de luz cai do alto de sua fronte como pano sobre o palco do teatro de nossas existências e cega-me, E às vezes me perco, Como me perdi com menos de trinta e perguntava se, Quando tivesse meia quatro, Você ainda precisaria de mim, Cuidaria de mim, E me via como um homem útil, Capaz de trocar uma lâmpada, Você tricotando junto à lareira, Fazendo piquenique e jardinando aos domingos, Com netos sentados no colo à tarde, Mas continuo o mesmo soldado desde o dia que nasci, Seu aliado em guerra contra a aversão do mundo mais de seis décadas afora, Desalojado das trincheiras, Mantido no front modorrento, Nublado de fumaça asfixiante, Tresandando corpos putrefatos, Um inferno sufocante, Numa batalha desigual e solitária, E por saber ainda como manter o nariz fora d´água, Inalar ares finos e puros que adentram a alma, E nela espalhar obstinação e força, Por ser árvore que se verga ao peso de mágoas excruciantes, Sem ter um único galho quebrado, Por não me defender com armas convencionais e letais, Que mutilam e matam, Sou cunhado como uma incômoda e sintética moeda desumana, Que insiste em manter-se em circulação. 


ENCARNAÇÃO

Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.  

ADEUS À CANDIDA B. Z. NATALI - 1927 - 2024

Adiemus, Adiemus!
Aproximem-se todos
Vocês que são da Itália e de Portugal
Querem filhos franceses ou brasileiros?
Abram os olhos porque vocês já estão no paraíso
Abençoada seja esta terra que vos acolheu


Adiemus, Adiemus!
Entrem numa casa de espanhola sem a filha saber
Perguntem às mães, às avós e aos seus cães vivos e mortos
Querem ilusionismos houdinianos ou cândidas adivinhações?
Mantenham os olhos fechados porque vocês estão dentro de um sonho
Abençoado seja este sono que vos repousa


Adiemus, Adiemus!
Ousem intrometer-se num enterro da aristocracia negra em Paris
Peçam para deportar vosso caixão do velho para o novo mundo
Querem filhos submissos ou libertos?
Abram os olhos porque a escravidão foi abolida
Abençoada seja esta miscigenação que vos contemplou 


Adiemus, Adiemus!
Pasmem com o veludo púrpuro que forra todas as paredes
Digam adeus às aulas de balé e língua estrangeira
Querem filhos de reis ou de trabalhadores?
Fechem os olhos para os que vos deserdaram 
Abençoados sejam os que a vós se irmanaram


Adiemus, Adiemus!
Cantem com mãos erguidas ao céu
Façam estalar todas as castanholas das ciganas espanholas
Querem dançar flamenco e baião ao mesmo tempo?
Abram os olhos para o verde exuberante
Abençoado seja o amarelo de nossas bandeiras 


Adiemus, Adiemus!
Deixem os céus tempestuosos
Venham para os solos férteis
Seus filhos são todos estrangeiros
Embarquem nos mesmos navios negreiros
E aportem na água, na terra e no fogo prometido aos mortais