Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.
Segundo dia da semana, Dia de inadimplir a promessa de tornar menos precárias as condições do corpo, É também o primeiro dia do ano, Dia para descumprir o voto de mudança, Desandando tudo que fora ajustado para ver a dura sorte que não muda, Uma semana e doze meses passam logo, Como as águas murmurando, Como a mocidade e a vida que se acabam, Como o meu tempo com você que não esperava ver-me aqui novamente, Porque você deve ter pensado que foi o dinheiro que nos separou, Mas com o ar de minha graça que agora lhe dou, Você se surpreende e se satisfaz, Estende-me os braços, Para me abraçar, E afasta-se para lançar sobre este garoto, O sorriso de adulta que exterioriza uma gama numerosa de sentimentos, Mas por ora nele só enxergo sinceridade, E uma indisfarçável curiosidade, E curioso é que nunca te falei de minha admiração pela sua bravura, Pois no seu lugar teria sucumbido para sempre, Talvez seja por isso que você não me pede mais para escolher um nome para minha libertação, Como se soubesse que, Quando morto, Pedirei para poupar-me à sepultura, Pois odeio a claustrofóbica cova fria e escura, Mas eu tenho um nome, E não sei por onde começar, Embora a semana tenha começado fresca, E terminará horrivelmente cálida, Menos adiantada em anos que exausta e rendida dos mesmos desacertos, Na verdade não quero começar, Aqui voltei só para enganar-me, Porque me canso de tanto enganar os outros, E como nas vezes anteriores, Você tentará trazer-me para terra firme, Mas terá que se conformar vendo-me nadando com alegria e galhardia na superfície das águas confortantes do oceano, Longe da praia, Cercado pelo verde exuberante que me dá esperança por todos os lados, Coberto de cor prussiana do céu sem nuvens e de sol alto que me traz paz de espírito na solidão e na imensidão, Eu não mergulho mais em águas profundas, Nem que você me dê uma generosa mão, Isto eu fazia quando meus medos nas águas eram menos dilacerantes do que no continente, Portanto você não conseguirá penetrar no meu universo, Quanto muito me ouvirá discorrer sobre os meus projetos que nunca serão executados, Fingirá interesse por eles, Para cativar-me, E alucinar-me com uma diabólica solicitude, E logo se cansará deles, Mas não vai desistir de mim enquanto eu estiver pagando-te para ouvir-me dizer-lhe o que não interessa a ninguém, Só a uma bruxa como você, Livre da inquisição, Que joga tarô e adivinha algumas poucas coisinhas bênticas que ficam enterradas nas profundezas do mar, Mesmo assim você quer que eu fale, E eu vou falar-te, Mas não de mim, De outras pessoas, Antes de você houve um homem que me livrou do exército porque eu estava habilitado a exercer atividades civis, Mas não militares, Na verdade, Eu mesmo livrei-me dos milicos da ditadura com uma presença de espírito que só pode ser atribuída a um anjo da guarda, Ele deu-me um par de asas, Mas não me ensinou a voar, Procurei um professor de alçar voo que adotava um procedimento meio confuso, Deixava escapar aos ouvidos dos outros que eu era tão inteligente que poderia ser um presidente, E esquecia-se do que me propunha, Mas suas ajudantes não se esqueciam do que eu lhe devia, Pensei: ‘A vinda de um filho é um bom momento para superar tudo isso e nunca mais voltar’, Mas o problema não vai embora, A doença nasce e morre com a gente, E ele concordou: ‘Gente assim sempre volta’. Será que ele quis dizer que eu preferia enfrentar o mundo dele ao invés de resistir a mim mesmo lá fora? Uma mulher mais esquisita que você, Que não cobrava para dar conselhos e nem os dava sem que lhe fossem solicitados, Disse-me que numa vida anterior fui um soldado alemão e morto em guerra, Outra mulher sofrida ajuntou as mesmas palavras, E meu último amigo também falou-me algo semelhante, E os três nunca se conheceram, Nem em vida, Nem depois dela, Talvez só nas encruzilhadas do inconsciente coletivo, Uma falava com voz de homem, Que o fruto só cai da árvore quando está maduro, E que quem morre em guerra é sempre revoltado, A outra, mais calma, Lamentava-se por terem levado seu bambino, O outro dizia que enquanto sobrevoava a área inimiga foi derrubado por uma rajada de balas, Será que tudo seria diferente se eu tivesse feito um pedido, Como minha mãe recomendou, Quando atirei meu primeiro dente de leite no telhado? E todas aquelas estrelas cadentes que eu deixei passar sem nada lhes rogar? Uma mulher muito diferente de você, Que preferia perder dinheiro e passar por privações para salvar uma vida humana, Disse-me que eu seria um coadjuvante anônimo num livro que pretendia escrever, Porque, Dizia ela, Num teste de livre associação de ideias, A única coisa na qual uma adolescente jamais pensaria é num pai vagando solitário e cabisbaixo pela praia, E quando meu pai morreu, Fiz o mesmo algumas noites, Coadjuvado pelas estrelas, E o que mais você quer que eu diga? Quer que eu te lembre de todas as promessas que eu fiz e não cumpri? Quando volto ao passado, Rezo para que ele tenha ficado somente com uma vaga recordação de mim, Ah sim, Antes que eu me esqueça, Naquela noite eu era mais criança, Minha alegria transbordava no quarto do hotel onde acionei todos os brinquedos que eu traria para minhas filhas quando eu voltasse para casa, Aquele sorriso no meu rosto, Sim, Aquele sorriso poderia ser um grito de guerra, Mas ela acabou, Sem vencedor, Com baixas dos dois lados, E outra começou, E apesar de sempre combater comigo contra o mundo, Continuei viajando por ele inteiro, E por muito tempo, E muitas vezes estive no Louvre em Paris, E cada vez que eu o visitava, Havia sempre uma aglomeração disputando o sorriso de Mona Lisa, Mas lá mesmo, Um dia, Vi um sorriso de uma natureza tão pura que Da Vinci gostaria de tê-lo só para si, Fora da tela, Somente nas mais internas camadas de seus olhos, E por hoje chega, Chega por esta vida, Estou indo embora, Jamais deixarei meu mundinho escroto, Onde minha dor oculta-se sob os véus mais finos, E ao mesmo tempo indevassáveis, Ninguém verá meu sentimento inquieto, Magoado, Escondido, Aterrador, Secreto, Que o coração me apunhalou neste mundão, Onde já espalhei toda minha devassidão, No entanto jamais contaminei as suaves ondulações salinas que me dão paz interior e que nunca sairão do lugar, Mas só queria lá voltar com a certeza de que nunca permitiria que aquele sorriso genuíno e divino se desvanecesse por um só instante, É somente por isso que continuo sobrevivendo, É a única razão para eu continuar neste conflito, E como a guerra é de mais de cem anos, Como Inglaterra contra França, Estou voltando para o mar, E vou morrer num campo de batalhas novamente.
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