terça-feira, 1 de agosto de 2023

NO CRÂNIO DA AMÉRICA E DO MUNDO

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.  LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)


Allen Ginsberg, poeta americano da contracultura e rebeliões juvenis dos anos 60, ainda se lembra muito bem daquela noite, do momento exato, quando foi a um lugar em Nova Iorque chamado THE DOM, e os Beatles lá cantaram I WANT TO HOLD YOUR HAND, com aquele som contralto intenso, OOOH, que entrou direto no seu crânio e, num instante, percebeu que aquele som iria entrar direto no crânio da civilização ocidental. Allen começou a dançar em público pela primeira vez na sua vida. Ele sentiu um prazer e um relaxamento impetuoso, mandando às favas toda timidez e todas as preocupações da vida. Os Beatles tinham um ritmo alegre. Suas vozes eram generosas, francas, joviais e solidárias. Eles não eram apenas quatro caras formando uma banda. Eles se amavam, tinham muita consideração uns pelos outros. Allen lembra-se que naquela noite no THE DOM se deu conta que a dança dos negros havia sido devolvida aos brancos ocidentais, que as pessoas iriam retornar aos seus corpos, e que os americanos iriam rebolar. Os Beatles mudaram a consciência dos americanos. Inventaram uma música repleta de masculinidade aliada a ternura e vulnerabilidade cabais. E quando foi aceita na América, esta música, mais do que qualquer outra coisa e qualquer outra pessoa nos EUA, ensinou os americanos a terem uns com os outros um certo tipo de relação mais afetiva, mais sincera e de mente mais aberta. Os Beatles fizeram isso com a América e com o mundo inteiro. Na mesma época, eu tinha apenas 15 anos e já havia sentido I WANT TO HOLD YOUR HAND não apenas penetrar em meu crânio, mas também cortar meu coração, quando eu, inocentemente, brincava com o jogo de botão e pela primeira vez em minha vida senti minha alma extasiar-se, arrebatar-se e comover-se com uma música saindo do rádio ao meu lado. Eu era tímido e bipolar, mas já conseguia dançar em público nos bailinhos nas casas dos amigos nos fins de semana. A partir daquele momento, aprendi também a tocar guitarra e a cantar, cantar em inglês todas as músicas dos Beatles. Meus amigos também se apaixonaram pela música dos Beatles, mas não entendiam o que eles diziam naquela língua estrangeira. Mas entender para quê? Música é melodia e não letra. Quem gosta de palavras lê poesia. Quem gosta de música não se importa se ela é cantada em língua viva ou morta. O que importa é a melodia, o arranjo, a progressão e originalidade melódicas, a voz humana, solo ou em coro, fazendo apenas o papel de mais um instrumento no conjunto. São estes ingredientes, e não as palavras, que alimentam a alma. E almas de todo o mundo conheceram um novo alimento que não se provava desde os tempos de Beethoven, Mozart, Bach e outros gênios da música clássica, que era, predominantemente, instrumental, sem palavras. Meu pai, só com curso primário, adorava os fab four, especialmente a música Please Please Me. Quando ele ouvia o refrão Come On, Come On, ele me perguntava por que eles sempre repetiam as palavras Qua Mão, Qua Mão. Alguém reclama da falta de letra ao ouvir a belíssima Bolero de Ravel de um único movimento?