sábado, 5 de novembro de 2022

DESATINOS

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

Às vezes, meus textos recebem raros elogios vindos de pessoas que, na verdade, não os entenderam. Disso eu sei ao ler seus comentários. Outras vezes, aliás, na maioria das vezes, meus textos recebem críticas. Dizem que eles não passam de uma colcha de retalhos, um amontoado de palavras e frases sem nexo. Dizem também que são piegas, amadores, presunçosos e faltos de verve literária. O problema é que não sei escrever, sobretudo sobre ideias alheias. O que faço é exercitar e desafiar meu intelecto, por entender que o cérebro não foi criado apenas para preencher a caixa craniana. Ele precisa pensar. Escrevo para mim mesmo sobre o que penso. Publico meus pensamentos nas redes sociais para esvaziar meu consciente  e meu inconsciente pessoal. É o mesmo que fazer terapia com um analista. Informações escondidas no inconsciente são conscientizadas, analisadas e, por fim, dispensadas. Mas o inconsciente nunca para de produzir. Nossa psique é maior que o universo e, portanto, tem espaço de sobra para todas as estripulias diárias do nosso inconsciente pessoal e coletivo.  Me perdoem por esta antipática falta de modéstia: hoje em dia gosto de ler somente o que escrevo. Eis aqui apenas três exemplos de meus desatinos:

1) IDEIA 

Acredito que ninguém, por mais inteligente que seja, jamais perceberá que frases como E ambas embrenham-se além da linha do horizonte, Entram em alto mar e se veem cercadas de água por todos os lados, Onde se navega com mais cautela do que na boa e rápida partida, Onde se baila, Se oscila e se equilibra, Com réplicas e tréplicas, Sem estribilhos e bordões, Com enésimas contra tréplicas e revelações, Com o tempo viajando bem mais lento, Sem perder a objetividade estática do valor relativo das asseverações, Da centralização das opiniões, O embate das argumentações, A fragilidade da condição humana, Sem perder a subjetividade dinâmica das iniciativas, Das esquivas, Das manobras, Dos vacilos, Das investidas e recuos, Da individuação, são meras descrições poéticas das várias estratégias do meio-jogo no xadrez, depois que as brancas e as pretas completaram suas aberturas. A música, Idea dos Bee Gees, fala por si.

2) ABAIXO DO DÉCIMO NÍVEL 



Acredito que pouca gente perceberá que o texto é escrito no ritmo das estrofes da letra (não da melodia) de Águas De Março de Tom Jobim. Compare os versos inicias:

É pau, é pedra, É o fim do caminho / Tem pessoas, Tem mentes, Abaixo do nível,             
É um resto de toco, É um pouco sozinho / Tem um pouco de tudo, Onde tudo é possível, 
É um caco de vidro, É a vida, é o sol, É a noite, é a morte / Fragmentos de pensamentos, Inteirezas de vidas, Vivências de naturezas, Antes dos tempos, Antes das mortes,                 
É o laço, é o anzol, É peroba do campo, Nó da madeira / Muitas chuvas e sóis, Muitas realezas, Tem sonos pesados, Sonhos resplandecentes,                                                     
Caingá, Candeia, É o matita-perê, É madeira de vento / Tem flutuações, Elevações, Projeções à frente,  Tem sonos leves,                 
Tombo da ribanceira, É o mistério profundo, É o queira não queira / Voos descendentes, Tem saltos profundos, Sentem e não sentem,  É o vento ventando,
É o fim da ladeira, É a viga, é o vão / Tem voos planados, Começos de vertentes, Tem corpos, Plenitudes,               
Festa da cumeeira, É a chuva chovendo, É conversa, é ribeira das águas de março / Fluências de gentes, Espíritos espiritualizando, Dimensões viventes, Abaixo do décimo nível...

O texto segue este ritmo até o fim. Compare os refrãos:

São as águas de março, Fechando o verão, É a promessa de vida no teu coração / Décimo nível abaixo, Abrindo os portais, Onde superfícies e profundidades não são iguais.

Engana-se quem pensa que o texto é um plágio da letra desta música de Tom Jobim. O texto nada tem a ver com Águas de Março. Ele lida com as camadas mais profundas do inconsciente humano. No filme O Mistério Da Libélula, um médico que perdeu a mulher, médica oncologista, conversa com os pacientes dela, todos crianças, e parece receber delas mensagens de sua esposa. Ele procura uma freira, famosa por seus relatos de pacientes que tiveram a chamada Experiência De Quase-Morte. A freira diz ao médico: Converse com um anestesista. Há centenas de degraus na escada da consciência, entre estar completamente alerta e estar morto. Para anestesiar um paciente, ele é levado somente até o décimo degrau. Além dele há uma escala cinza, como as profundezas de um oceano inexplorado. O que faço é explorar este oceano, sem a pretensão de saber o que lá existe, mas apenas especular sobre todas as estranhezas que costumamos ver em sonhos. A música escolhida, Dissolve dos Chemical Brothers, se enquadra perfeitamente com o ritmo do texto.



3) APENAS UM MOMENTO 




Este breve texto recebeu elogios, mas quem os fez não sabe que estou lidando com as crendices dos índios norte-americanos. Todos os sistemas mitológicos nascem da mesma base fundamental. Os deuses são filhos da reverência e da necessidade. No entanto, a mitologia dos índios norte-americanos data de um tempo bem mais remoto. O homem selvagem, incapaz de distinguir o animado do inanimado, imagina que todos os objetos à sua volta, como ele próprio, são instintivos e com vida. As árvores, os ventos e os rios possuem vida e consciência. As árvores gemem e farfalham, portanto, elas falam, e são moradias de espíritos poderosos. Os ventos carregam palavras, visões, avisos, e ruídos que, sem dúvida, são poderes que vagueiam. São seres amigáveis ou inamistosos. As águas se movem, articulam e profetizam. Até mesmo as qualidades abstratas devem possuir atributos de coisas vivas.  A luz e a escuridão, o calor e o frio, são considerados agentes ativos que alertam. O céu é visto como o pai que, em cooperação com a mãe-terra, gera todas as coisas vivas. As características destas crenças são chamadas de animismo. A música escolhida para este texto, Lay Your Cards Out da cantora Poliça, parece ter sido criada especialmente para este texto.


As ideias de todos os textos vêm do intelecto e este, por sua vez, é impulsionado pela alma alimentada por música e pela intuição materializada por uma ilustração. Músicas e ilustrações não estão em cada texto por acaso. A música é a alma do intelecto e a ilustração seus olhos.