Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.
O bairro da Água Fria é uma
pequena galáxia situada no quadrante norte do universo de São Paulo. Seu núcleo
é denso, um mar de vida singrado pela avenida homônima, que começa lá em cima,
no alto de Santana, onde também começa a Avenida Nova Cantareira, e termina, de
novo, lá em cima, no Barro Branco, aonde também chega a mesma Avenida Nova
Cantareira. Só mesmo as dobras da teia do espaço curvado pela massa humana, pelo
asfalto e pelo concreto podem explicar os encontros, desencontros e reencontros
destas duas avenidas pertencentes a bairros distintos.
De 1959 a 1975, eu morei na
ponta de um dos tênues braços espiralados deste pequeno aglomerado. O sistema
solar onde eu morei tem um nome peculiar: Corneteiro Jesus. Todos os seus
habitantes, desde os mais antigos até os de hoje, chamam-no, erroneamente, de
Corneteiro de Jesus, fazendo os sistemas vizinhos pensarem que o nome se refere
a um anjo que anuncia o retorno do mitológico discípulo do João Batista com uma
trombeta. Jesus era um soldado do quartel do Barro Branco que, segundo a lenda,
nunca deixou de cumprir seu dever uma única vez sequer durante o seu tempo de
serviço: soar sua corneta todos os dias às 5 horas da manhã para acordar o
regimento.
Um sistema vizinho, a Rua
Albuquerque de Medeiros, apelidada de Mombuca, era o nosso maior rival, ou
melhor, rival somente da garotada no futebol. As teimas eram tiradas num
território inexplorado e desolado, além dos limites da galáxia, chamado Carne
Seca, considerado um campo neutro, mas, na verdade, era mesmo um reduto distante
dos Mombuqueiros e dominado por eles. Hoje, imaginem vocês, o famigerado Carne
Seca deu lugar ao refinado bairro Jardim França.
Mas o meu sistema não vivia só da rivalidade com a Mombuca. Tinha muita
tradição e muita história. Jogos olímpicos eram disputados todos os anos, de
Janeiro a Dezembro, à maneira dos Gregos, só pelos machos, mas não desnudados,
enquanto as fêmeas tinham permissão para assistir só a alguns poucos jogos e de
longe. Tinha época certa para cada tipo de modalidade: o jogo de botão com
tampas de relógios que o saudoso Tio Chico trazia da famosa Casa Castro na Praça
da República; os rachas de futebol no asfalto, com bola de borracha que ganhava
a forma perfeita quando furava; o jogo de taco que, ao contrário do baseball
americano, não permitia jogadores e assistentes tirarem uma soneca enquanto o
prélio de 2 contra dois transcorria; as bolinhas de gude que estecavam outras
para fora do triângulo, matavam palmo a palmo e a queima-roupa e se encaçapavam
nos a boxes sob a terra; o roda pião na cela que cravava a couraça de madeira
com um prego; a caça aos quadrados com cortante e a humilhação do adversário com
a captura de seu papagaio em pleno ar; a caça ao balão para não ficar pagão, a
guerra de estilingue com munição de mamona que ardia mas não matava; o jogo do
abafa com figurinhas repetidas, desgastadas e descartáveis; a corrida de
carrinhos de rolimã ladeira abaixo e muita ralação nos joelhos; o passeio de
patinete, movido pelos pés como no tempo dos Flintstones. Estranhamente, as
artes marciais eram sempre praticadas à noite, e sem a violência dos dias
atuais: a mana mula e seus castigos pictóricos ao muar sorteado: amassa tomate,
um bife e um batata, cortar salaminho, levar o burrinho para beber água,
bombeirinho. Finalmente, balança caixão, uma fileira curvada, apoiada dorso a
dorso, que recebia um tranco de dobrar a coluna, como Zorro saltando das alturas
e caindo montado em seu cavalo. Era estranho também que somente à noite os
meninos se enturmavam com as meninas, e com elas praticavam alguns esportes
amadores meio efeminados: amarelinha, passa-anel, cobra-cega e queimada. No
entanto, até onde sei, não foi em razão do relacionamento com estas flores que
algum cravo se tornou rosa.
Já era época de acasalamento
para os garotos, mas para as garotas eram apenas tempos de flertes, e, para mim,
flertar era enviar um bilhetinho e, com sorte, conseguir um aceno de mão
delicada à distância. Isso mudou com a inesquecível Márcia, que morava noutra
galáxia, chamada Jardim São Paulo, e comigo estudou noutra ainda bem maior e
mais distante, chamada Jaçanã. A Márcia me ensinou a namorar, a beijar e a me
fazer imaginar o que eu poderia tentar com as três beldades mais cobiçadas do
meu sistema. A Tânia era a mais provável, a mais liberal, aquela que, dizia-se,
gostava de mim, mas ela raramente se aventurava além dos limites de seu planeta,
onde ela nunca me recebia sozinha, mas só acompanhada de outras amigas. A Maria
parecia impermeabilizada pela frescura e arrogância. Sempre pensei que ela usava
estes escudos como mecanismo de defesa para sua insegurança. Enganei-me. Na
verdade, ela era exigente e muito autoconfiante. A Lúcia era recatada demais.
Ela parecia estar se preparando para entrar num convento de freiras. Enfim,
jamais consegui arrancar um simples beijo, nem do tipo selinho, de qualquer uma
das três. Pensei, então, que eu só fosse encontrar outras encantadoras
alienígenas como a Márcia fora de minha Galáxia nanica.
Mas um dia, surgiu uma nova
habitante nas imediações da Corneteiro. Uma garota linda, de 18 anos, dois a
mais do que eu, mas com um olhar penetrante e sensual de mais de 21. Nem
parecia ser da minha espécie de tão adorável e atraente. Parecia uma deusa.
Mesmo com toda aquela formosura, era humilde e discreta. Era pobre e precisava
trabalhar para ajudar em casa, e logo arrumou um emprego na farmácia Santa
Luzia, na movimentada Avenida Água Fria. Ela fixou residência perto da Maria e
com ela fez amizade. Certa ocasião, surpreendentemente, a Maria veio ter
comigo, e me disse que aquela deusa queria conhecer o simpático turquinho que
ela via passar pelo larguinho com sapatos brancos da Arco-Flex. Minha bela napa
havia confundido a deusa, pois meu nariz não vinha da capital do império romano
do oriente e nem mesmo da capital do império do ocidente de onde descendo por
parte de pai. Ele veio do meu lado materno espanhol. Amor à primeira vista é
sempre assim: nossa primeira troca de olhares selou o mais apaixonante e
empolgante namoro que eu tive em toda minha vida. Por essa deusa, eu abandonei
as olimpíadas diurnas e as brincadeiras noturnas, e passei a me dedicar mais à
poesia e à música. Tornei-me um trovador.
Minha deusa fazia questão que
eu fosse busca-la na farmácia todos os dias nos finais de tarde. De mãos dadas,
começávamos a subir a Rua Altinópolis, lentamente, esperando a noite cair como
um véu sobre nossa intimidade. Passávamos pela Rua Dr. Alcides Prestes e
desviávamos para a Rua Gracianópolis. Para não expor nossa cumplicidade à Rua
Casa Forte, muito próxima da Rua Marechal Fontoura onde a minha deusa morava,
fazíamos outro desvio para a Rua Ismael Nery, e lá nos recostávamos sob uma
árvore frondosa que foi testemunha das mais belas carícias e juras de amor.
Voltávamos para casa sempre por caminhos separados, e nos fins de semana nos
reencontrávamos na casa da saudosa Dona Vera, que sancionou o nosso amor como
uma juíza de paz, e fez de seu lar um ponto de encontro de todos os jovens do
grupo local de sistemas.
Esta deusa poderia ter me
ensinado outras coisas além dos beijos cinematográficos e dos abraços apertados,
repletos de ternura, mas ela preferiu preservar o meu romantismo e o alimentou
com palavras emblemáticas. Dizia que eu era seu 'marinheiro'. Inebriado de tanta
paixão juvenil, eu não me preocupava em saber qual de nós estava empreendendo
sua primeira viagem pelos complicados caminhos do coração, e retribuía sua
sublime vivacidade feminina com poesias e canções. A minha deusa se encantava
com meus escritos e meus cânticos e me estimulava a fazer declamações ao longo
dos caminhos que trilhávamos juntos.
Num lindo sábado vespertino,
com o céu rosáceo do sol poente, passeávamos pela Rua Florinéia, onde ficava o
Grupo Escolar Expedicionário Brasileiro do qual recebi o meu diploma do curso
primário. De repente, nos deteve uma agradável e distante melodia, vinda das
cercanias, e que passou por nós como o efeito Doppler, se aproximando lenta e
suavemente, depois nos arrebatando com sua estrondosa sonoridade e, finalmente,
se distanciando gradativamente como os últimos raios de sol no firmamento. Eram
os Beatles na voz de Paul cantando 'Você diz sim, eu digo não. Você diz pare e
eu digo vá. Você diz adeus e eu digo olá'. Sempre que ouço ou apenas me lembro
desta canção sou imediatamente remetido para aquele momento que nos deixou
estáticos e comovidos, pois nós não tínhamos ido ao encontro daquela canção. Ela
que veio até nós. Só hoje compreendo que, embora 'Hello Goodbye' tivesse se
tornado a nossa música favorita, ela nos procurou para nos dar um enigmático
aviso. Naqueles dias, eu não entendia porque Paul precisava dizer a uma mulher:
'Eu não sei porque você diz adeus enquanto eu digo olá'.
Num domingo de matinê, a
Maria veio ter comigo de novo, desta vez para me dizer que a deusa havia
desmanchado o namoro por causa de sua mãe. Quando a Márcia mandou me dizer que
nosso romance estava acabado por causa de seu irmão, eu senti um vazio enorme,
mas não demorei muito para me refazer. Mas quando a minha deusa fez o mesmo
comigo, o chão desabou sob os meus pés e me fez cair numa profunda fossa. Fiquei
desesperado, desamparado, desorientado e sem forças para subir à superfície.
Custei muito a voltar ao convívio habitual com meus amigos da Corneteiro e da
Extensão do Jaçanã onde eu estudava até que, depois de muito tempo, consegui
iniciar um novo namoro com a Rosa, com quem me casei, tive três filhas e de quem
me divorciei depois de nossa festa de bodas de prata.
Eu tinha com a Rosa um
namorico firme, mas eu não perdia um baile sequer da turma que conheci em outras
galáxias. Num desses bailes, realizado nas proximidades da Rua Ismael Nery, eu
saí para a sacada do sobrado para dar umas tragadas e bebericar uma cuba-libre
ao ar livre (desculpem-me o trocadilho barato), e me surpreendi com a presença
da minha deusa no canto oposto do terraço. De longe, ela me viu e me acenou, e
logo veio ao meu encontro. Já não me recordo quem a convidara para aquele baile
ou mesmo se ela estava acompanhada. Ela me tirou para dançar e, em seguida, me
chamou para um passeio. Eu lhe perguntei para onde e ela me respondeu: 'Nossa
árvore está perto daqui'. Eu achei tudo aquilo muito casual, brusco e
oportunista demais. Não se coadunava com a preciosa paixão, caprichosamente
lapidada, que tínhamos um pelo outro. Por isso, naquela noite, eu estava menos
empolgado do que curioso. Menos emocionado do que ansioso.
No entanto,para a frondosa
árvore, nada era fortuito ou inesperado. Para ela, tudo era sempre igual como as
quatro estações do ano, e nós éramos uma delas que retornava com os mesmos
acalorados beijos e abraços de verão aos quais ela se acostumara. O que aquela
árvore jamais presenciara foram as lágrimas vertendo dos olhos meigos e sinceros
da minha deusa, com uma voz embargada a suplicar-me perdão. Foi a primeira vez
que eu vi aquela jovem mulher que eu endeusei chorar, dizer que sentia minha
falta e que não poderia viver sem mim. Eu era ingênuo e simplório demais para
minha idade e, muitas vezes, paradoxalmente, eu me comportava com uma fidelidade
que se espera encontrar somente nos adultos. Eu cometi o sacrilégio de não
assentir imediatamente ao pedido de minha deusa, porque eu estava comprometido
com outra garota. Ela não se conformou e levantou a voz contra mim. A última
coisa que eu esperava da minha deusa era uma promessa de vingança. Eu não pude
acreditar nas suas palavras e as atribui a um possível excesso de vodca no
baile. Contudo, a minha deusa estava falando sério e sóbria, pois, na semana
seguinte, ela bateu na casa da Rosa em plena luz do dia, chamou-a para fora e
fez um grande escândalo por minha causa.
Comentar os desdobramentos
daquele incidente seria uma injustiça à coragem, firmeza e determinação da minha
deusa. Basta dizer que pouco tempo depois deste triste episódio ela deixou a
Água Fria e nunca mais a vi.
Em termos astronômicos, essa
deusa foi como um cometa desvencilhado das gravidades solares e que, nas suas
andanças pelo universo de São Paulo, precisou fazer uma breve parada na galáxia
Água Fria, mas seu brilho passou desapercebido por todos os habitantes, o que
não pode ser justificado só pelo fato dela ter feito uma morada transitória nos
confins desse pequeno agrupamento estelar, pois ela demorou-se o suficiente no
seu populoso núcleo para ser notada. Talvez ela fosse uma deusa só para mim, mas
que não pertencia a mim nem à Água Fria.
Se eu pudesse voltar no
tempo, eu diria a ela que eu era muito medroso e muito fraco. Receava que meu
frágil coração não resistisse a mais uma desilusão como aquela que tive com a
Márcia, e agora com minha própria deusa. Talvez eu me sentisse mais seguro com a
Rosa, que era mais tímida do que eu, mais conservadora, incapaz de empolgar, mas
também incapaz de despedaçar corações de qualquer idade. Se você pegasse no meu
pé como sua mãe pegou no seu. Se você chutasse o pau da minha barraca como você
chutou o da Rosa. Se você soubesse como eu me abalava emocionalmente com tanta
facilidade. Se você soubesse...
Como eu não posso mais voltar
no tempo, resta-me dizer que a Avenida Água Fria nasceu ao lado da Avenida Nova
Cantareira, e seguiu adiante, quase sempre em linha reta, sempre fiel ao bairro
que leva seu nome, recebendo inúmeras ruas perpendiculares e serpenteadas, como
um rio que acolhe vários afluentes, e sempre conformada com as delimitações de
sua jurisdição. Já a Nova Cantareira tomou um rumo diferente, abriu um enorme
leque para o leste, fez o Jardim São Paulo e a Vila Pauliceia abrirem alas para
lhe dar passagem, perscrutou todo o bairro de Tucuruvi, se impôs como fronteira
entre o Jardim França e o antigo Morro do Ademar, bateu de frente com o Barro
Branco sem tomar conhecimento da Avenida Água Fria que ali se contivera, e
voltou a se embrenhar pelo norte, deixando para trás a Vila Albertina e o
Tremembé até chegar ao pé da serra que leva seu nome e faz fronteira com o
universo de Mairiporã.
Talvez eu tenha sido a
Avenida Água Fria, mais resignado e com expectativas mais limitadas, enquanto a
minha deusa foi a Avenida Nova Cantareira, mais atirada, como um Ulisses
instigado pelo destino a sair em busca de odisseias e contemplar outros mundos.
Coincidentemente, hoje resido na base da Serra da Cantareira, com a Cecília,
minha esposa, e a pequena Ana Carolina, minha quarta filha. Mas minha deusa, eu
não sei onde está.
Embora tivéssemos nossos
corações partidos, tínhamos que nos manter ocupados para não nos transformarmos
em inconsoláveis. Havia um monte de coisas que precisavam ser feitas. E só Deus
sabe com que corações partidos tivemos que faze-las. Embora tivéssemos sonhos
frustrados, tínhamos que nos manter ocupados porque não podíamos viver de sonhar
um com o outro. Havia muitas coisas que precisávamos realizar. E só Deus sabe
com que sonhos frustrados tivemos que realiza-las. E porque tínhamos lembranças
recorrentes que nos deprimiam, tivemos que beber para esquecer um do outro, pois
nos diziam que isto curaria o tempo adoentado, mas só Deus sabe com que tamanha
depressão acordávamos de nossas bebedeiras. E porque ficávamos chorando o tempo
todo, tivemos que cobrir nossas lágrimas com sorrisos forçados e seguir em
frente como se estivéssemos recuperados, mas só Deus sabe quão sofridas têm sido
nossas peregrinações pela vida, distantes um do outro, e com os nossos corações
machucados.
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