Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.
Querida Deirdre, Teu súbito e
recente passamento serenou meu espírito, Por mais cruel e ignóbil que possa
parecer este sentimento, Dizia minha avó espanhola que o pouco leva ao
desespero, O muito à calma, Só espero que a efusão da saudade não me afete, Como
fazem os ricos com os pobres para não serem importunados, E de todo aplaque-se à
sucessão de meus dias sem você, Embora não acredite em vida após a morte, Falo
com você como se você me ouvisse, Porque você sempre teve o outro lado como
certo, Tamanha era sua fé, Não duvido pela mera quizila de descomprazer, Mas
porque sempre ambicionei somente certezas científicas, Então te puxo para mim do
montículo de terra sobre o último lugar para nos guardar, Sem sabermos onde
estar, Cubro-me de suas lembranças, Estas me mergulham em devaneios, Quimeras, E
bolinhas de sabão, A ponto de desejar que você possa ter projetado sua
consciência para fora do corpo antes dele falecer, E que sua mente vaga por ai,
Sem massa encefálica, Sem hora para se recolher, Recebendo e despachando
pensamentos, É utópico, Você sabe, Uti non abuti, Porque me conheceu bem, Sempre
me quis melhor ainda, E não quero que uma única nota de minha alegria se cale
por sua triste partida, Você se decepcionaria muito comigo se eu o permitisse,
Se você estiver verdadeiramente me captando, Deve estar de mãos nos quadris,
Menos zangada do que surpresa, Você já sabe que não vou mais publicar meus
livros, Você havia me convencido, Assenti, Dolorosa e profundamente áulico,
Confesso, Por você enquanto viva, Mas não fiz nenhum juramento pelo resto de
nossas vidas e que está sendo quebrado pelas suas costas, Nada mudou, Tudo
continuará como sempre quis, Postagens nas redes sociais e nada mais, Não
consigo conceber a fealdade de palavras solitárias, Só os gênios da literatura
as fazem ganhar vida e beleza na companhia de leitores compulsivos, De mentes
cultas, Não consigo apreciar o que escrevo sem o meu triunvirato, Esta minha
trindade que insiste em colocar em harmonia a alta expressão do pensamento, A
arte e ciência de combinar os sons de modo agradável à minha audição, E a
representação gráfica, Fotográfica e plástica, Do ser e do objeto, Somente os
três juntos alimentam meu espírito, Algo comparável somente à sua voz artística,
De cortar a alma, Emprestada às minhas várias palestras performance que
demandavam mais do que um personagem, E às vezes até cinco deles, Como em
Contexto Para Uma Parábola, Dois dos quais femininos, Duas mulheres
interpretadas brilhantemente por você, Com distintos e difíceis tons de falas,
Ambas com diferentes sotaques semíticos, E mais ainda, Você elevava suas partes
do texto às alturas rarefeitas em que costumava abonar-se, Para sensibilizar o
público, Especialmente o masculino, Exprimindo a parte emocional e intuitiva da
mulher, Por oposição à suposta parte intelectual do homem, E uma das homenagens
que lhe faço aqui, É postar as duas músicas que você escolheu para sua
participação em nossa apresentação, Iskanderia de Natacha Atlas quando é a
Herodiana quem fala, E Waiting de Sheila Chandra, Quando é a vez de Maria
Madalena, Você já sabe também que minha fase de palestras, Tanto as acadêmicas,
Como as de performance, Terminaram, E decidi publicá-las no meu livro Um Bazar
Chamado Pescoço de Cavalo, Exceto algumas, Como aquela chamada Gravidade. Porque
achei-a pedante e presunçosa, Mesmo tendo ela caído no seu gosto, Mas se você
continua de cara feia, Te pergunto: Que importância tenho eu para explicar aos
outros o que escrevo e como? Nenhuma! Sou tão insignificante como Maravilhas
Explicadas, Quem se interessa por esclarecimentos de um pretenso escritor
amador? Nem mesmo eu, Um rude fariseu, Tenho interesse em ler e buscar
explicações para as crônicas dos melhores colunistas do jornal O Estado de São
Paulo, O melhor da América Latina, Que leio desde criança, Contudo, Mesmo a
contragosto, E relutante, Você aquiesceu ao pequeno texto reescrito com o mesmo
nome, Gravidade, Meu último que você leu pouco antes de seu adeus sem
aviso-prévio no dia 02/03/2016, E apesar de ainda preferir a transcrição da
palestra na íntegra no meu livro, Você teve a bondade de me felicitar pela minha
fidelidade, Sem nenhuma concessão, À minha triádica escrita, As ideias nascidas
do intelecto, Impulsionado pela alma, Nutrida por música e também pela intuição
em busca de uma ilustração para materializar o conjunto, Nunca as músicas, Nem
as ilustrações serviram de simples decorações de textos, Elas nunca se fizeram
presentes por capricho e acaso, A música é e sempre será a alma do intelecto e
a imagem seus olhos, Se onde você se encontra lhe foi preservado o dom da
reminiscência, Recordará que na palestra Gravidade foram poucos os que
entenderam como o conto Além do Portão nasceu de uma interpretação da música
Bylar pela alma, E ofereceu ocasião e uma demanda natural para se elaborar um
contexto para tal interpretação, E eu decidi explorar as Experiências De
Quase-Morte que aprendi com os vários livros de Kenneth Ring, Fui longe demais
sobre algo que jamais saberemos, Ou talvez eu esteja errado e você possa já
estar sabendo de tudo, Especulei sobre o que acontece com aqueles que decidem
não voltar de um coma, Deixando o mundo real sem provas, Apenas com um cadáver,
E não se esqueça que quase ninguém se empolgou com minha ingênua pretensão de um
Grand Finale, Aquele último e longo parágrafo de duas páginas de livro, Escrito
em português galego do século 14, E que me tomou três meses de leituras da
época, Neste momento, Posso até ler seu pensamento retrucando: E o texto Abaixo
do Décimo Nível? Todos que o leram jamais perceberam que foi escrito no ritmo de
Águas de Março de Tom Jobim, E os presentes na palestra tampouco o entenderam
apesar de minhas cuidadosas e prudentes elucidações, Você se lembra de alguém
ter perguntado o significado de Abaixo do Décimo Nível? Como convencê-los de que
há centenas de degraus na escada de nossa consciência, Desde o alerta total até
a morte? Como fazê-los entender que, Na preparação para uma cirurgia, A
anestesia geral faz nossa consciência descer somente até o décimo degrau, E
abaixo dele há um verdadeiro universo de informações e experiências onde,
Possivelmente, Reside parte do conhecimento absoluto que o cosmos nos concede de
graça? Discutimos muito sobre isso, E certamente você não esqueceu da catarse da
palestra, porque Gravidade foi escolhida como título, E porque a palestra foi
ilustrada com a foto daquela mulher sem rosto, Parecendo um mar engolido pelos
céus, Uma ilha sumida nos mares, Destilando mistérios, Curiosidades pelo
elementar e absurdo, Sabe, Deirdre, As pessoas só têm tempo para sobreviver, E
fora disso, Só querem o que o império romano oferecia ao povo: Panis e
circenses, Só que o entretenimento dos romanos nada tinha a ver com a cultura de
uma civilização esclarecida e inteligente como a Ateniense, Os gregos visavam
conquistar o saber, E os romanos apenas o poder, Todos nós sempre soubemos que
somos uma ínfima parte do todo, Mesmo assim queremos ser lembrados por alguma
coisa, Queremos fazer algo que fez diferença no mundo, Algo que mudou a vida das
pessoas para melhor, Mas não somos nada, Por isso deixo o que escrevo, Que nada
tem de valor, Nestas chamadas redes sociais, Para ser esquecido, E não lembrado,
Apenas para me convencer de que passei por este mundo, Nada importante,
Simplesmente para certificar-me de que existi aqui uma única vez, Só isso,
Gravidade foi escrita para explicar o que não interessa a ninguém, Explorando
uma das três tríades que chamo de olhos da alma, Aquelas imagens que me desafiam
a escrever sobre elas, Sem querer saber o que seus criadores pretendiam nos
transmitir com suas artes e os nomes que lhes foram dadas, E Gravidade foi uma
das raras imagens que minha alma não conseguiu atinar, E precisei, Pela primeira
vez, Entrar em contato com a artista, Uma Argentina, E pedir a ela para me
descrever o significado da foto, Inclusive a razão de seu nome, Foi um desafio
para mim e para o público que continuou a ver navios, Mas, Em compensação, Tive
o enorme prazer de compartilhar com você o que inferi das generosas elucubrações
que ganhei da artista: Não preciso ver seu rosto, Porque em você não há nada de
assustador e misterioso, Há quem sinta a gravidade caindo, Nos levando para
casa, Subindo e vendo estrelas colidindo, Para saber de onde viemos, Há quem
pense nas lembranças esquecidas de uma mulher que acredita que você um dia já
foi, Até quem note os nítidos detalhes de seus sapatos, E ainda os ouve como
moedas a tilintar, Te vejo como reflexo da composição de um artista, Vejo você
evocar e recriar uma atmosfera livre, Um desígnio singular que te define, Uma
cintilação suave, Incerta e fina, Que bruxuleia incolor e sozinha, Indo de um
puro rio a uma opaca névoa, Ainda não desfeita do sol nascido, Criando a ilusão
de um ser desaparecendo no ar rarefeito, Uma ninfa etérea e real, Atraída pela
gravidade sem peso, Flutuando em direção a uma luz que se acende em mim, Ao
final, Deirdre, Ficou muito melhor a redução de quase duas horas de falação
inútil a alguns minutos de leitura, Se bem que quase ninguém lê, Mas nada me deu
mais satisfação do que reviver algumas das várias ilustrações que me inspiraram
escritos, A mulher espectral que caminha solitária na escuridão de um casarão
abandonado, Mas que precisa de uma lamparina para se guiar, Porquanto só quem
vive precisa de luz, A jovem que derrama uma lágrima de terror perante o horror,
E que para mim se afigura como o feminino santificado que abençoa e enfrenta o
medo, A outra que não sorri e foi fotografada num momento de acidez, Mais uma
outra que fita o vazio infinito, Sem nenhuma esperança, Por algo que perdeu para
sempre, E, Por último, Aquela que esbanja charme, Numa fria indagação,
Dissimulando seu interesse do porquê, Na madrugada do dia seguinte à sua morte,
Enquanto seu corpo aguardava a dissolução em poeira, Pensamentos vários
tramitavam em minha mente, Todos voltados para você, À luz brilhante das
estrelas, E refleti: Delas viemos, Para elas voltamos, E por que não sonhar que
estamos viajando entre elas, Prócion, A cintilação de uma lâmpada suspensa,
Castor e Pólux, Os padroeiros de nossas aventuras pelo espaço, Nossos fogos de
Santelmo, E para mim a única Helena que você sempre foi, Minha Betelgeuse, O
braço de minha guerreira, Do centro regulador de minha psique, Rígel, O seu pé
de algo maior, Não se exaspere com este meu cansativo palavreado, Gastei toda
esta saliva para lhe dedicar um poema, Sonhos Com Estrelas, Que gostaria que
você lesse, Mas não se perturbe, Jamais serei um cão Meara se lamuriando sobre o
corpo de seu dono Arcturo, Não me lembrarei de você somente na data de seu
aniversário, Como Vega e Altair, Vivendo em lados opostos da abóboda celeste, E
com permissão de se encontrarem somente uma vez por ano, Nunca fizemos nenhum
pacto, Daqueles que quem morrer primeiro volta para avisar o outro, Nunca
fizemos promessas, Portanto, Deirdre, Resta-me te dizer, Não te prometer, Que
por você, Doravante vou tentar transformar meus pálidos debuxos de morte-cores
em aves-do-paraíso.
São Paulo, 01/10/2016
São Paulo, 01/10/2016
Minha Canção para Deirdre
Canção de Deirdre para a Herodiana
Canção de Deirdre para Maria Madalena
Maravilhosa homenagem a Deirdre!!!!!
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