sábado, 30 de julho de 2022

TE VEJO EM SETEMBRO

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 





Vejo-te em Setembro quando o verão deixa o hemisfério norte e se põe a caminho do sul, minha adorada, e para você estou voando, pátria amada, fugindo das folhas caídas, pegando um resto de frio acalorado, vendo as flores preparando-se para desabrochar. Do meu lado há um professor de educação física, dos tempos do chicote para menos de 300 abdominais de uma só vez. Ele faz uma oração a Santo Egídio antes de o avião decolar. Parece uma corça que come desconfiada na relva sossegada onde o leão está longe, mas não descarta a remota chance de aparecer. Um sujeito alto perambula pelos corredores procurando seu assento. Tem uma máquina fotográfica pendurada no pescoço. Não é turista. Deve ser repórter, pois veste um colete de lona cheio de bolsos carregados. Encontra um lugar ao lado de um soldado cuja farda toda azulada lembra-me da velha guarda civil dos meus tempos de criança e respeito pelos cidadãos. A autoridade que deve proteger também pede proteção. Ele fala com Santa Dorotéia, própria da estação que está por vir. Sua prece é fervorosa e convence até Crista e Calista. Atrás de mim duas pessoas conversam sobre a fauna e a flora amazônica. Um é biólogo e ressalta o grande número de animais ainda desconhecidos pelo homem. O outro é farmacêutico e fala das muitas plantas medicinais raras que são contrabandeadas para o exterior. A aeronave desgruda do chão e os dois interrompem a conversa instantaneamente. Sobra apenas uma dupla de murmúrio parecido com canto gregoriano com redutor de ruído Dolby. Decifro as palavras balbuciadas e delas vêm São Moisés e Santo Herculano. Eu não sabia que existe santo com este nome. Quantas pessoas rezam para Moisés? Quantos sabem que Herculano foi um soldado romano? O sujeito do meu outro lado é gentil e se apresenta, mas logo sai dizendo que é um alfaiate. Por que alguém em pleno ar precisa dizer que é alfaiate? Será que estou tão mal vestido com minha calça cargo, camiseta de cinco dólares e chinelo e estou precisando de uma faxina indumentária? O alfaiate logo se volta para o passageiro sentado no último banco da fileira e arrisca: ‘Aposto que você é administrador de empresas?’ Há quem diga que quem é formado em administração não é formado em nada, mas será que é tão fácil assim identificar um administrador? O alfaiate não me perguntou sobre minha profissão, e eu sou administrador, ou seja, não sou nada, e o hipotético administrador junto à janela nada respondeu. Manteve-se imóvel, imerso em sua reza a São Zacarias. E Zacarias, tornou-se santo só porque era primo de Maria? Se ele é santo, então sua mulher, Isabel, deve ser também. Da boca do inerte só saiu o nome masculino, solene, respeitoso, como se estivesse cantando o hino nacional pela primeira vez, faltando apenas soltar o grito de independência ou morte. Os avisos de apertar o cinto de segurança foram apagados. Levanto-me para esticar as pernas. Estou gordo e não aguento ficar sentado num apertado cubículo. Vou ao banheiro e fico andando pelos corredores antes do serviço de bordo começar. Há muita gente descontraída e muita gente apreensiva, e com fome também. Uma mulher diz a outra: ‘Sou alfabetizadora’. Ela quis dizer ‘professora’. A outra responde: ‘Sou cuidadora de animais’. Ela quis dizer ‘veterinária’. A primeira diz: ‘Sou devota de Santa Regina’. A segunda responde: ‘E eu de Santa Anastácia’. Outra mulher no assento de trás cutuca as duas e diz: ‘Prazer, sou velocista e devota de São Adriano’. Não sei o que ela quis dizer com velocista. Motociclista? Piloto da fórmula Indy? Corredora dos 100 metros sem barreira? Perguntei-me quantos tipos de profissionais pode-se encontrar num voo com centenas de humanos. Um caixeiro viajante? Um serventuário? Um oficial  da justiça? Um cabeleireiro? Um impressor? Continuo minha andança e passo por um homem solitário lendo um jornal com tanta curiosidade e tanto pasmo que parece estar lendo o primeiro jornal do país. De repente, turbulência! O avião começa chacoalhar, a dançar frevo. A comissária pede a todos para afivelarem seus cintos e permanecerem sentados. Tento voltar para meu lugar aos trancos e barrancos, jogado pra lá e pra cá. Uma mulher segura um terço com uma cruz e abre o bico: ‘Minha Santa Pulquéria, ajuda-nos, por favor!’ Eu não estranho nomes como este porque conheci um sujeito chamado Vazinton. A intenção do pai dele era dar-lhe o nome de Washington. O que eu estranho é um piloto anunciar para todos que estamos perdidos no meio de uma tempestade, mas que o operador de rastreamento em terra já foi avisado! ‘São Jacinto’, grita outra mulher, 'faça esta tempestade parar’. Um homem ao lado dela fala manso: ‘Não se perturbe, mulher, estamos sob a proteção de São Roberto Belarmino e nada vai nos acontecer’. E a mulher ao lado dela arremata: ‘E de Santa Dulce também’. Estranho também é um jovem tranquilo em meio a tanto desespero tirar uma flauta da bolsa e começar a tocar aquela música SEE YOU IN SEPTEMBER. Não resisti e perguntei-lhe: ‘Por acaso você é músico, devoto de São Francisco ou coisa parecida?’. E ele responde: ‘Sou musicoterapeuta, quer ser meu cliente?’. Com todo respeito à serenidade do rapaz, a única música que acalma meu espírito é a britânica. A comissária vem atrás de mim e me pede para voltar urgentemente ao meu assento, mas não deu tempo. A borrasca parou, a aeronave se aprumou e o piloto avisou: ‘Graças a São Geraldo nos livramos do pior’. Um passageiro grita: ‘Não foi não, foi graças a São João Crisósteomo’. Outro retruca: ‘Nada disso, foi graças a Nossa Senhora das Dores’. E uma mulher ainda arruma fôlego para discordar: ‘Gente, foi São Cornélio, ele nunca falha’. Quando voltei ao meu assento percebi que o conjeturado administrador havia começado a falar com o alfaiate e eu entrei na conversa. O sujeito com cara de administrador começou a fazer conjecturas. ‘Creio que este problema de temporal a dez quilômetros de altura tem a ver com a falta de preservação da camada de ozônio. É preciso que haja uma compreensão mundial sobre o assunto. Todos os países estão preocupados apenas com seus símbolos  nacionais, mas não pensam de forma global, de forma planetária’. Interpelei-o: Que mal lhe pergunte, qual é sua profissão?’. E ele respondeu: Por acaso tenho cara de administrador?’. Respondi que não. E ele completou: 'Sou teatrista e devoto de São Zacarias, e o senhor?’. Para agradar gregos e troianos, judeus e samaritanos, eu disse: ‘Embora não pareça, sou administrador e devoto de Deus, portanto sou devoto de todos os santos’. Mas o teatrista, e acho que ele quis dizer ator de teatro, cobrou: ‘Quais são seus favoritos?’. Fiquei numa saia justa, mas nestas alturas, com tantos nomes exóticos pegando carona no avião, arrisquei: São Panfilo, São Januário, São Maurício e muitos outros’. Mas ele continuou cobrando: ‘Nenhuma santa?’. ‘Claro que sim, Santa Fausta, Santa Ifigênia, Nossa Senhora das Mercês e várias outras’. Antes de o teatrista fazer mais uma pergunta, pedi licença para ir ao banheiro, mas na verdade saí só para deixa-lo por conta do alfaiate e esticar as pernas. Antes da tempestade havia uma mistura de descontração e apreensão, agora havia muito alívio e falação. Lembrei-me de um amigo que é agente de viagens e que me tranquilizava quando eu lhe perguntava se a companhia aérea que ele escolheu era segura. ‘Até agora, que eu saiba, nenhum avião desta linha aérea caiu’. Pior que isso é você ouvir: ‘Não se preocupe, uma avião nunca cai no mesmo lugar duas vezes’. Nas minhas perambulações pelas alas, resolvi juntar-me às arengas. ‘Prazer, sou administrador e devoto de São Firmino, e o senhor?’ ‘Mucho gusto, sou gaúcho, funcionário municipal aposentado prematuramente por deficiência física, tornei-me um fazendeiro, só planto árvores e sou devoto de São Cosme e Damião’. O simpático moço sentado à frente ouve nossa conversa e se antecipa: ‘Sou devoto de São Vicente de Paula e contador’. ‘Contador de histórias?’, perguntei. ‘Não, apesar de jovem, já sou formado em ciências contábeis’. Outro mais atrás completa: ‘E eu sou devoto de São Venceslau e soldador’. ‘Vai seguir a carreira de soldado?’, perguntei. ‘Não, trabalho com máquinas de solda’. Eu queria parar de dar foras, mas outro nas proximidades emendou: ‘Sou devoto dos Santos Miguel, Gabriel e Rafael e sou técnico industrial e de edificações’. Fui salvo pelo carrinho pedindo passagem para servir o jantar. Por sorte, nas imediações, havia um assento vago. Definitivamente, não queria comer entre o alfaiate e o teatrista. A comissária fez a pergunta clássica: ‘Frango ou carne de vaca?’. A mulher do meu lado pergunta se tem sorvete. Estamos na classe econômica e ela vai ter que se contentar com um pote de geleia na sobremesa. Depois de comer, preciso levantar andar e papagaiar. ‘Prazer, sou administrador e devoto de São Jerônimo, e o senhor?’. ‘Sou ateu e relação pública no departamento de trânsito’. Um sujeito logo à frente me diz que é surdo, mas não mudo, e faz leituras labiais e me explica que é encanador, devoto de São Lino e que me acha muito engraçado. Eu não deixo por menos: ‘Você colhe canas?’. Ele ri e me pergunta se estou viajando a trabalho. Eu só viajo a trabalho. Não tenho este luxo de fazer turismo internacional. Um senhor idoso parece ser médium e ler os pensamentos dos outros: ‘O senhor tem alguma coisa contra Isabel ser santa como seu marido Zacarias?’. ‘Me desculpe, mas eu não disse isso em nenhum momento e respeito sua devoção à Santa Isabel’. Sou devoto de Isabel, mas não da santa’. ‘De qual Isabel o senhor está falando?’. ‘Da Isabel que proclamou a lei do Ventre Livre’. ‘Por acaso o senhor é médium?’. ‘Não, sou anunciante’. ‘Um profeta?’. 'Não, faço anúncios em jornais e revistas. Mas já fiz de tudo na minha vida. Já trabalhei em poços de petróleo, na navegação marítima e fluvial, já fui jornaleiro e tradutor. Mas nunca realizei meu sonho de ser secretário, porque em nosso pais só as mulheres podem ser secretárias. E o senhor sabe que outros tipos de profissionais eu gostaria de ser e que podem ser encontrados neste voo? Comprador, hidrófago, cantor, tia, amante, radialista, banana... ’. A conversa ficou estranha demais e pedi licença para ir ao banheiro. Voltei para meu assento e, por sorte, o teatrista e o alfaiate estavam dormindo e roncando. Dormi o resto da viagem e só acordei pouco antes do pouso. Chegamos ao destino final, um país tropical. Agora é só esperar a primavera chegar e torcer para que minha amada tenha me esperado e largado qualquer outro namorado. Não é isso que diz o cara naquela canção WHEN SUMMER IS GONE







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