Texto de autoria de Austmathr Viking Dublinense com direito autoral protegido pela Lei 9610/98 - Reeditado por Inglesa Luso-Chinesa em 10/12/2022
Estive na casa de minha mãe. Meu pai morreu há mais de 25 anos, mas ele está lá, vivendo normalmente. Estão lá também meus irmãos e minhas cunhadas. Há agitação no ambiente. Parece que estão tentando encontrar uma solução para um problema que aflige meu pai, uma grande perda financeira. Alguém sentencia: Vamos vender a casa do Alceu. Fico assustado, olho para meu pai e ele anui com a cabeça. Ele não sorri, como nunca sorriu nestes mais de anos, mas sempre manteve o olhar sereno, a voz doce e pausada, mas agora está com cara de poucos amigos, nervoso. Dirijo-me a ele e pergunto: Isto não deveria ser resolvido com a colaboração de toda a família? Ele responde em tom ríspido: Você viu o que você fez com meu dinheiro? Ele nunca falou assim comigo. Solícito e sempre mantendo o respeito, pergunto: Então eu e minha família teremos que viver de aluguel? Ele é curto e grosso: Sim, vai! Vem-me, então, a triste lembrança da velha casa alugada onde morei durante mais de cinco anos. Antiga e mal cuidada, nos fundos, debaixo de outra também judiada, com poucas janelas, sem ventilação, sem brechas para o sol entrar. É triste pensar que terei que voltar para lá. Minha cunhada mais velha, de semblante odioso, faz questão de fundamentar a decisão de meu pai. Ela me leva ao longo corredor que liga a sala à cozinha. Nele há quatro cômodos, dois de cada lado. Num deles há uma espécie de solário, uma pequena área, sem teto e telhado, para deixar o sol iluminar o vitrô do banheiro do lado direito e o da cozinha do lado esquerdo. Ela abre a porta e me mostra uma grande pilha de notificações extrajudiciais, intimações e ações executivas que chegaram para mim. Fico mais assustado ainda. Voltamos para a sala e lá meu pai está ao telefone, já terminando uma conversa. A mesma cunhada completa: Já chegamos a um acordo com o corretor. A comissão é de 11%. Ele estima o valor da casa em 500 mil reais e já tem um cliente. Todos me encaram, dando a entender que devo voltar para casa para mostrá-la ao comprador. Volto rápido e espero na sala. Lá da cozinha minha esposa avisa que ouviu gente chegando. É o Ari, Alceu! Olho através da enorme parede de vidro e vejo dois homens de terno já dentro da área externa, passando por entre a vasta vegetação dos jardins. Um terceiro vem logo atrás, mas não vejo seu rosto. Não conheço estes homens. Um deles deve ser o corretor e o outro o comprador. Não conheço ninguém chamado Ari. Mas como minha esposa sabe o nome dele? Estranho é que eles caminham no mesmo nível da sala. Eu deveria vê-los de cima para baixo porque minha sala do nível superior fica um andar acima da entrada. Estranho também é que minha casa não tem jardins frondosos na frente, e nem mesmo uma enorme parede de vidro. A parede é de concreto e tem, de fato, uma grande porta de vidro que se abre para uma pequena sacada de onde se avista a exuberante mata de árvores altas do outro lado da rua. O que vejo é como se a mata tivesse cruzado a rua, entrado pelo portão e se instalado na forma de um majestoso jardim no espaço entre o portão principal e a cobertura da garagem. Neste momento já não estou mais preocupado com o fato de que minha casa será vendida. Estou em dúvida sobre por onde devo começar a mostrar a casa. Pelo térreo? Pelos fundos? Pelo andar superior? Na medida que os dois homens se aproximam da porta da sala vejo o rosto do terceiro que vinha atrás e me surpreendo com alegria, como a visão do impossível que maravilha um incréu. É o Peru, meu companheiro de ginásio dos anos 60 e que curtia rock comigo. Faz décadas que não o via. Tenho procurado por ele, mas ninguém que eu conheço e que o conheceu sabe de seu paradeiro. Ele entra e me cumprimenta com um sorriso, sem muito entusiasmo. Ele parece ser um dos corretores. Veste terno e gravata. O paletó é azul celeste, mas não extravagante. Com a mão direita ele segura uma pasta de cartolina, um folder, junto ao peito. Ele percorre a sala e se detém diante de um móvel que não tenho. Uma espécie de balcão de madeira envernizada e reluzente bem no meio da sala, no sentido horizontal. Sobre este balcão estão dispostos vários discos, CDs, capas dos antigos discos de vinil, estojos de papelão contendo coletâneas de música. Ele anda ao longo do balcão, com olhos percorrendo a exposição de música, passa por uma coletânea do Cocteau Twins e chamo sua atenção: Esta banda é muito boa, mas ele torce o nariz e prossegue. Para diante de um estojo de discos dos Rollings Stones, sua banda favorita, e exclama: Puxa, você tem esta coleção, e eu esclareço: É uma antologia de singles dos Stones. Tem mais novidades logo adiante. De repente, passa por mim uma mulher caminhando em direção à parede do lado direito da sala. Ela deve ser uma corretora que chegou atrasada. O que a atrai é outro balcão semelhante que nunca tive, próximo à parede, mas sobre este só há livros. Ela toma em suas mãos um livro deslumbrante, que cintila de tão novo. É grosso e deve ter umas mil páginas. Tem mais largura que altura. Sua capa dura plastificada é magnífica. Tem uma chamativa combinação de tons vinho, vermelho e roxo. No centro há a foto de uma mulher estrangeira trajando roupas de meados do século 19. Sua roupa é um pouco excêntrica para a época. Vestido trocado por uma calça comprida e larga, estreitada logo acima do tornozelo, parecendo um gênio de lâmpada. A corretora me pergunta: Esta não é aquela mulher que é médium? Respondo que sim e que o livro é muito bom. Minha consciência pesa por mentir. Não conheço este livro. Mais à frente ela pega outro bem vistoso, bem grosso também, com mais de mil páginas, mas não consigo identificar sua capa. Tenho cerca de dois mil livros em casa, mas não estes que exacerbam meu fascínio por eles, tanto quanto jamais ler um livro e preferir vê-lo ornamentar a estante, como objeto de decoração e veneração. Hoje eles me lembram um livro misterioso com o qual já me deparei duas vezes, em terras exóticas e estrangeiras. Numa delas cruzei uma praça da baixa idade media europeia, com casas de pedra de três andares nos quatro cantos, muita gente alegre e extrovertida, e muitas cores enfeitando seus ares. Este livro enigmático não deve ter mais que 500 páginas. Sua capa dura é velha, não tem cor definida, nem título. Nas duas ocasiões que o tive nas mãos pude folheá-lo só por uns instantes e vislumbrar umas poucas páginas, tempo suficiente para ler respostas a perguntas que nunca imaginei que pudessem ser feitas. Ele parece ser o livro da vida, o livro do conhecimento absoluto, capaz de responder às nossas mais inquietantes e reiteradas questões: De onde viemos? Quem somos? Para onde vamos? O telefone toca e peço licença à corretora para atende-lo. É minha mãe, desesperada, pedindo-me para que eu venha logo porque meu pai foi levado em estado grave a um hospital. Quando chego à sua casa vejo meu pai caído nos primeiros degraus que levam ao segundo andar, e que não existem porque a casa é térrea. Ouço seu lamento fúnebre, vejo seu desesperado olhar moribundo, antes sereno. Ele está passando mal porque soube que foi internado num hospital. Meu pai está em dois lugares ao mesmo tempo: agonizando em casa e numa UTI. Não posso levar minha mãe ao hospital porque ela precisa ficar em casa cuidando de meu pai. Logo que chego ao hospital sou informado que ele acabou de morrer. Não vejo o dia, nas minhas viagens do tempo, de cruzar, novamente, com aquele enigmático livro da vida para ver se encontro novas teorias, novas formas de medir a constante da estrutura fina do universo. Meu foco não é saber o que muda através do universo, mas o que muda ao longo do tempo. Há mais de 50 anos eu não sabia que esta constante serve para medir a inteligência. Eu não sabia que uma pessoa divertida como o Peru é, hoje, uma felizarda vítima de um certo grau patológico de idiotice e isso põe fim a uma ingênua idolatria da adolescência.
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