terça-feira, 12 de novembro de 2024

QUANDO A SITUAÇÃO ESTÁ PERICLITANTE O VALENTE SEGUE ADIANTE

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98

Às vezes a morte é muito precipitada com os valentões e preguiçosa com os cagões, mas nem sempre ela é assim. Nem sempre ela vem para ceifar vidas. Muitas vezes ela aparece apenas para fazer uma visita, tomar um café, bater um papo, agradecer a hospitalidade, esperar pelo irritante volte sempre e se despedir com o patético qualquer coisa, é só avisar. Às vezes o cagaço do bunda-mole lhe impõe uma humilhação que lhe renderia a alcunha de cabra frouxo se ele vivesse na terra do cangaço. Se o borrado soubesse dessas idiossincrasias da morte ele não sairia correndo em dias fatídicos e permaneceria calmo e parado como um cagarola fez na primeira hora de uma noite quando ele se encontrava abraçado com a namorada no ponto de ônibus e viu, à distância, se aproximando pela calçada, uma horda de desordeiros, chutando latas de lixos, escarrando, urinando nos postes, uivando como coiotes de porre e vomitando toda sorte de palavrões para os que iam e vinham a pé ou motorizados. Não demorou muito para aqueles vândalos do ânus da periferia chegar até ele e sua namorada e prensá-los contra a parede prenunciando um duplo estupro, mas com preliminares com requintes cáusticos:

E aí, meu, não vai apresentar a noivinha pra gente?

Solenemente, o cagão apresentou sua namorada ao chefe daqueles fariseus que, jocosamente, se inclinou, beijou a mão da moça, voltou-se para o cagão e lhe disse:

Mina joia, meu.

O metorusus agradeceu e apressou-se em apresentar a si mesmo e acrescentou que estudava no Ginásio do Prolongo e de lá viera a pé até a avenida para pegar o ônibus de volta para casa.

Espera aí! Conheço-te! Você é amigo da turma do sei lá de quem do Prolongo! Ei, patota, esse cara é dos nossos! Cacete, cadê a educação? Cumprimentem a noiva dele!

Aqueles fuleiros limparam o ranho e a baba com o dorso das mãos ensebadas, e um a um contaminou a delicada e suave pele da eleita do cagão, meneando as cabeças para frente, leve e seguidamente enquanto andavam de fasto, como se fossem súditos sem permissão para dar as costas a uma princesa antes de deixar o palácio.

Valeu, meu! Joia te encontrar e conhecer sua noivinha! Fica frio. Aqui, lá no Prolongo e nesse pedaço todo você está em casa! É só dar um toque. E não se esqueça da gente quando sair o casório!, despediu-se o Átila do bairro.

Quando a morte se depara com a pessoa errada, ela se toca, por assim dizer, se constrange com a mancada que deu e, ao querer se desculpar com agrados, acaba se complicando mais ainda e comete gafes como prometer que lhe avisará com antecedência quando sua hora estiver chegando. A pessoa errada neste caso pode ter sido a namorada do poltrão protegida pelo seu daimon. Só isso poderia explicar o engano esdrúxulo de ser reconhecido por alguém que o cagão nunca viu mais gordo e ainda ser associado à turma de um sujeito cujo apelido era tão difícil de entender e de guardar quanto o de um colega seu do mesmo Ginásio do Prolongo que disse ter sido transferido de uma escola com um nome tão cumprido e complicado cuja única parte inteligível era ligabuia.

Volta e meia a morte é confundida com uma pessoa que na verdade a odeia e se o covarde soubesse desses odds and sods, esses baratos afins da morte, naquele dia lúgubre ele permaneceria parado e calmo e depois prosseguiria tranquilamente, como fez aquele franzino cabra bom, cabras às direitas, e que, ao atravessar a caatinga, inadvertidamente cruzou o caminho de Lampião e foi tomado por um jagunço, um cangaceiro manso, e se viu cercado pelo bando maldito. Mas o sujeito era mesmo cabra do colhão roxo e não se intimidou com as ameaças de Virgulino. Não o desafiou e nem o desrespeitou, mas também não fez concessões à sua neutralidade e desengajamento por isso foi logo condenado a morrer antes da hora.

Sai correndo, seu cabra da peste, e não olha pra trás. Vamos ver até onde você consegue chegar, exclamou Lampião.

Os cangaceiros começaram a armar os gatilhos e o sujeito miúdo se pôs a caminhar lentamente, a passos curtos e pernas atracadas, sem hesitar e sem esboçar qualquer gesto com a cabeça ou com os braços. Andava como se já estivesse morto apreciando a paisagem desolada do jardim do éden do sertão nordestino e como se algumas balas varando seu corpo não fizessem qualquer diferença. Ainda com o condenado bem ao alcance das espingardas, Lampião, meio escabreado, levantou a mão e gritou para todos:

Deixa-o ir embora! Este é cabra-macho e vai ser cria nossa!

É difícil precisar se um cagão é cria ou refém do medo. Um dia o arregão saiu mais cedo do trabalho para sacar um benefício em dinheiro. Deu partida no carro, subiu a rampa da garagem, alcançou a rua, virou à direita e logo chegou na avenida principal que se encontrava com o trânsito completamente parado devido à enorme quantidade de veículos. O caguincha foi se espremendo e se enfiando até entrar pela faixa reservada para ônibus e logo deu o sinal de seta para a esquerda esperando que alguém lhe dessa passagem para a pista do meio. O cagolara estava comprimido entre ônibus e o de trás começou a buzinar incessantemente.

Esse trânsito maluco deixa todo mundo cada vez mais nervoso. Esse cara pensa que buzinando vai fazer os carros andarem, resmungou o caguinha.

O tráfego permanecia preguiçosamente estático como a vegetação arbustiva do semiárido, mas barulhento como maritacas fazendo coro, e quando andava era insuficiente para abrir uma brecha por onde o cagão pudesse deixar o território dos coletivos, brutamontes impacientes. E para piorar, aquele que fungava no seu cangote resolveu cravar o dedo na buzina e espalhar por toda redondeza a  presença insignificante do bundão com um ruído espalhafatoso, feito um cancão do asfalto, a voz da mata sem cor. O cagão olhou no espelho retrovisor e percebeu que não só o motorista, mas várias pessoas com as cabeças para fora das janelas esbravejavam alucinadamente contra ele.

Esses caras são gozados. Acham que tudo está parado por minha causa e que eu tenho que sair da frente deles decolando como um helicóptero, desdenhou o chorão.

De repente, várias pessoas desceram do ônibus ao mesmo tempo, lançaram-se em direção do fraote, envolveram seu carro, arrancaram-no para fora, vociferaram contra ele e o ameaçaram em uníssono. O cagão borrou as calças, não entendeu bulhufas e tratou de se desvencilhar dos agarrões, cutucões e empurrões e saiu numa desabalada carreira avenida abaixo, largando tudo para trás, como um doido varrido agonizando em meio a um ataque de pânico, exigindo o máximo de suas pernas ligeiras e mantendo os braços ocupados como duas asas recolhidas e alternando cotoveladas e socos no ar para manter o corpo em equilíbrio, o que não lhe permitia tapar os ouvidos para silenciar os disparos ardidos que esperava queimar seu corpo e para emudecer o angustiante barulho tal qual o  grito infinito da natureza de Munch e que ainda estremecia a atmosfera desde o buzinaço ensurdecedor daquele condutor apressado. E não podia também tapar os olhos para esconder o vexame, mas tampouco necessitava fazê-lo para ganhar o dom de mântis de Tirésias, pois, embora não pudesse prever se sairia desta vivo, sabia onde queria chegar e como. Ele não corria numa mata branca onde um projétil espoletado viaja livre e impune nas extensas planícies interplanálticas e trespassa com facilidade as cadavéricas e deprimentes árvores de troncos tortuosos e folhas perdidas. O cagão corria pela mata descorada feita de altos maciços de pedra e dispostos na forma de intrincados labirintos saturados de transeuntes em constante movimento de vaivém o que dificultava uma perseguição corpo a corpo e um tiro a queima-roupa. Bastava o medroso fazer o quadrilátero perfeito para voltar ao seu local de trabalho e lá chegar quase desfalecido, desabar num sofá e ser logo acudido pelos seus companheiros preocupados e ansiosos para saber o que aconteceu.

Um bando de assassinos levou meu carro lá na avenida e tentou me linchar, balbuciou o borrado antes de desmaiar.

Ele foi levado a um hospital onde foi apenas sedado e, no mesmo dia, recebeu alta. Seus colegas foram até o local do incidente e para surpresa deles, o carro do frouxo continuava no meio da via pública, com o motor ligado e portas abertas, sem estorvar ninguém, pois naquela hora o engarrafamento encontrara vazão e o trânsito fluía normalmente. Um comerciante local ainda permanecia na calçada observando o veículo desde a hora do incidente e foi ele quem explicou para os companheiros do cagão o que se passara.

Não foi nada não. Foi um pessoal que fretou alguns ônibus para ir ao enterro de um amigo que foi assassinado e eles estavam meio de cabeça quente e descontaram no rapaz só porque ele entrou com seu carro no meio do cortejo fúnebre.

 

When the going gets tough, the tough gets going, when the going gets rough, the tough gets rough

Um comentário:

  1. cara, mais um texto seu de arrebatar; talvez muita gente se liga no lado humorístico do seu texto, eu também, mas eu me ligo à sua inteligência ao fazer uma analogia fantástica entre o sertão nordestino e as ruas de uma metrópole:

    O trafego permanecia preguiçosamente estático como a vegetação arbustiva do semiárido, mas barulhento como maritacas fazendo coro, e quando andava era insuficiente para abrir uma brecha por onde o cagão pudesse deixar o território dos coletivos, brutamontes impacientes. E para piorar, aquele que fungava no seu cangote resolveu cravar o dedo na buzina e espalhar por toda redondeza a presença insignificante do cagão com um ruído espalhafatoso, feito um cancão do asfalto, a voz da mata sem cor

    versus

    Ele não corria numa mata branca onde um projétil espoletado viaja livre e impune nas extensas planícies interplanálticas e trespassa com facilidade as cadavéricas e deprimentes árvores de troncos tortuosos e folhas perdidas. O cagão corria pela mata descorada feita de altos maciços de pedra e dispostos na forma de intrincados labirintos saturados de transeuntes em constante movimento de vaivém o que dificultava uma perseguição corpo a corpo e um tiro a queima-roupa.

    super inteligente, cara

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