Às vezes a morte é muito precipitada
com os valentões e preguiçosa com os cagões, mas nem sempre ela é assim. Nem
sempre ela vem para ceifar vidas. Muitas vezes ela aparece apenas para fazer
uma visita, tomar um café, bater um papo, agradecer a hospitalidade,
esperar pelo irritante volte sempre e se despedir com o patético qualquer
coisa, é só avisar. Às vezes o cagaço do bunda-mole lhe impõe uma
humilhação que lhe renderia a alcunha de cabra frouxo se ele vivesse na terra
do cangaço. Se o borrado soubesse dessas idiossincrasias da morte ele não
sairia correndo em dias fatídicos e permaneceria calmo e parado como um cagarola
fez na primeira hora de uma noite quando ele se encontrava abraçado com a
namorada no ponto de ônibus e viu, à distância, se aproximando pela calçada,
uma horda de desordeiros, chutando latas de lixos, escarrando, urinando nos
postes, uivando como coiotes de porre e vomitando toda sorte de palavrões para
os que iam e vinham a pé ou motorizados. Não demorou muito para aqueles
vândalos do ânus da periferia chegar até ele e sua namorada e prensá-los contra
a parede prenunciando um duplo estupro, mas com preliminares com requintes
cáusticos:
E aí, meu, não vai apresentar a
noivinha pra gente?
Solenemente, o cagão apresentou sua
namorada ao chefe daqueles fariseus que, jocosamente, se inclinou, beijou a mão
da moça, voltou-se para o cagão e lhe disse:
Mina joia, meu.
O metorusus agradeceu e apressou-se em
apresentar a si mesmo e acrescentou que estudava no Ginásio do Prolongo e de lá
viera a pé até a avenida para pegar o ônibus de volta para casa.
Espera aí! Conheço-te! Você
é amigo da turma do sei lá de quem do Prolongo! Ei, patota, esse cara é
dos nossos! Cacete, cadê a educação? Cumprimentem a noiva dele!
Aqueles fuleiros limparam o ranho e a
baba com o dorso das mãos ensebadas, e um a um contaminou a delicada e suave
pele da eleita do cagão, meneando as cabeças para frente, leve e seguidamente
enquanto andavam de fasto, como se fossem súditos sem permissão para dar as
costas a uma princesa antes de deixar o palácio.
Valeu, meu! Joia te encontrar e
conhecer sua noivinha! Fica frio. Aqui, lá no Prolongo e nesse pedaço todo você
está em casa! É só dar um toque. E não se esqueça da gente quando sair o
casório!, despediu-se o Átila do bairro.
Quando a morte se depara com a pessoa
errada, ela se toca, por assim dizer, se constrange com a mancada que deu e, ao
querer se desculpar com agrados, acaba se complicando mais ainda e comete gafes
como prometer que lhe avisará com antecedência quando sua hora estiver chegando.
A pessoa errada neste caso pode ter sido a namorada do poltrão protegida pelo
seu daimon. Só isso poderia explicar o engano esdrúxulo de ser reconhecido por
alguém que o cagão nunca viu mais gordo e ainda ser associado à turma de um
sujeito cujo apelido era tão difícil de entender e de guardar quanto o de um
colega seu do mesmo Ginásio do Prolongo que disse ter sido transferido de uma
escola com um nome tão cumprido e complicado cuja única parte inteligível era
ligabuia.
Volta e meia a morte é confundida com
uma pessoa que na verdade a odeia e se o covarde soubesse desses odds
and sods, esses baratos afins da morte, naquele dia lúgubre ele
permaneceria parado e calmo e depois prosseguiria tranquilamente, como fez
aquele franzino cabra bom, cabras às direitas, e que, ao atravessar a caatinga,
inadvertidamente cruzou o caminho de Lampião e foi tomado por um jagunço, um
cangaceiro manso, e se viu cercado pelo bando maldito. Mas o sujeito era mesmo
cabra do colhão roxo e não se intimidou com as ameaças de Virgulino. Não o
desafiou e nem o desrespeitou, mas também não fez concessões à sua neutralidade
e desengajamento por isso foi logo condenado a morrer antes da hora.
Sai correndo, seu cabra da peste, e não
olha pra trás. Vamos ver até onde você consegue chegar, exclamou Lampião.
Os cangaceiros começaram a armar os
gatilhos e o sujeito miúdo se pôs a caminhar lentamente, a passos curtos e
pernas atracadas, sem hesitar e sem esboçar qualquer gesto com a cabeça ou com
os braços. Andava como se já estivesse morto apreciando a paisagem desolada do
jardim do éden do sertão nordestino e como se algumas balas varando seu corpo
não fizessem qualquer diferença. Ainda com o condenado bem ao alcance das
espingardas, Lampião, meio escabreado, levantou a mão e gritou para todos:
Deixa-o ir embora! Este é cabra-macho e
vai ser cria nossa!
É difícil precisar se um cagão é cria
ou refém do medo. Um dia o arregão saiu mais cedo do trabalho para sacar um
benefício em dinheiro. Deu partida no carro, subiu a rampa da garagem, alcançou
a rua, virou à direita e logo chegou na avenida principal que se encontrava com
o trânsito completamente parado devido à enorme quantidade de veículos. O caguincha
foi se espremendo e se enfiando até entrar pela faixa reservada para ônibus e
logo deu o sinal de seta para a esquerda esperando que alguém lhe dessa
passagem para a pista do meio. O cagolara estava comprimido entre ônibus e o de
trás começou a buzinar incessantemente.
Esse trânsito maluco deixa todo mundo
cada vez mais nervoso. Esse cara pensa que buzinando vai fazer os carros
andarem, resmungou o caguinha.
O tráfego permanecia preguiçosamente
estático como a vegetação arbustiva do semiárido, mas barulhento como maritacas
fazendo coro, e quando andava era insuficiente para abrir uma brecha por onde o
cagão pudesse deixar o território dos coletivos, brutamontes impacientes. E
para piorar, aquele que fungava no seu cangote resolveu cravar o dedo na buzina
e espalhar por toda redondeza a presença insignificante do bundão com um
ruído espalhafatoso, feito um cancão do asfalto, a voz da mata sem cor. O cagão
olhou no espelho retrovisor e percebeu que não só o motorista, mas várias
pessoas com as cabeças para fora das janelas esbravejavam alucinadamente contra
ele.
Esses caras são gozados. Acham que tudo
está parado por minha causa e que eu tenho que sair da frente deles decolando
como um helicóptero, desdenhou o chorão.
De repente, várias pessoas desceram do
ônibus ao mesmo tempo, lançaram-se em direção do fraote, envolveram seu carro,
arrancaram-no para fora, vociferaram contra ele e o ameaçaram em uníssono. O
cagão borrou as calças, não entendeu bulhufas e tratou de se desvencilhar dos
agarrões, cutucões e empurrões e saiu numa desabalada carreira avenida abaixo,
largando tudo para trás, como um doido varrido agonizando em meio a um ataque
de pânico, exigindo o máximo de suas pernas ligeiras e mantendo os braços
ocupados como duas asas recolhidas e alternando cotoveladas e socos no ar para
manter o corpo em equilíbrio, o que não lhe permitia tapar os ouvidos para
silenciar os disparos ardidos que esperava queimar seu corpo e para emudecer o
angustiante barulho tal qual o grito infinito da natureza de Munch e que
ainda estremecia a atmosfera desde o buzinaço ensurdecedor daquele condutor
apressado. E não podia também tapar os olhos para esconder o vexame, mas
tampouco necessitava fazê-lo para ganhar o dom de mântis de Tirésias, pois,
embora não pudesse prever se sairia desta vivo, sabia onde queria chegar e
como. Ele não corria numa mata branca onde um projétil espoletado viaja livre e
impune nas extensas planícies interplanálticas e trespassa com facilidade as
cadavéricas e deprimentes árvores de troncos tortuosos e folhas perdidas. O
cagão corria pela mata descorada feita de altos maciços de pedra e dispostos na
forma de intrincados labirintos saturados de transeuntes em constante movimento
de vaivém o que dificultava uma perseguição corpo a corpo e um tiro a
queima-roupa. Bastava o medroso fazer o quadrilátero perfeito para voltar ao
seu local de trabalho e lá chegar quase desfalecido, desabar num sofá e ser
logo acudido pelos seus companheiros preocupados e ansiosos para saber o que
aconteceu.
Um bando de assassinos levou meu carro
lá na avenida e tentou me linchar, balbuciou o borrado antes de
desmaiar.
Ele foi levado a um hospital onde foi
apenas sedado e, no mesmo dia, recebeu alta. Seus colegas foram até o local do
incidente e para surpresa deles, o carro do frouxo continuava no meio da via
pública, com o motor ligado e portas abertas, sem estorvar ninguém, pois
naquela hora o engarrafamento encontrara vazão e o trânsito fluía normalmente.
Um comerciante local ainda permanecia na calçada observando o veículo desde a
hora do incidente e foi ele quem explicou para os companheiros do cagão o que
se passara.
Não foi nada não. Foi um pessoal que
fretou alguns ônibus para ir ao enterro de um amigo que foi assassinado e eles
estavam meio de cabeça quente e descontaram no rapaz só porque ele entrou com
seu carro no meio do cortejo fúnebre.
When the going gets tough, the tough gets going, when the going gets rough,
the tough gets rough
cara, mais um texto seu de arrebatar; talvez muita gente se liga no lado humorístico do seu texto, eu também, mas eu me ligo à sua inteligência ao fazer uma analogia fantástica entre o sertão nordestino e as ruas de uma metrópole:
ResponderExcluirO trafego permanecia preguiçosamente estático como a vegetação arbustiva do semiárido, mas barulhento como maritacas fazendo coro, e quando andava era insuficiente para abrir uma brecha por onde o cagão pudesse deixar o território dos coletivos, brutamontes impacientes. E para piorar, aquele que fungava no seu cangote resolveu cravar o dedo na buzina e espalhar por toda redondeza a presença insignificante do cagão com um ruído espalhafatoso, feito um cancão do asfalto, a voz da mata sem cor
versus
Ele não corria numa mata branca onde um projétil espoletado viaja livre e impune nas extensas planícies interplanálticas e trespassa com facilidade as cadavéricas e deprimentes árvores de troncos tortuosos e folhas perdidas. O cagão corria pela mata descorada feita de altos maciços de pedra e dispostos na forma de intrincados labirintos saturados de transeuntes em constante movimento de vaivém o que dificultava uma perseguição corpo a corpo e um tiro a queima-roupa.
super inteligente, cara