Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98, Se desejar, clique no link abaixo e leia o texto ao som de uma música apropriada para o mesmo
Deve ser porque escrevi um
livro premiado, Porque tenho uma coluna num jornal de alta circulação, E porque
tenho um blogue numa editora, Reservo-me a imbecilidade de me antipatizar com os
textos dos outros sem nunca tê-los lido, Como se minha ridícula presunção jamais
tenha sido tomada a contento, Tal como água benta, Não tem aí um sino que toque somente à minha alma? Um almocreve que possa chicotear minha bestialidade e
apressar meu trote? Alguém que possa beijar as costas de minhas mãos? Alguém que
possa engolir comigo o ranho que escorre de meu nariz e a pseudo
intelectualidade que vaza de meu ânus?
Talvez sejam as roupas extravagantes que
você não usa, As cores do arco-íris que não enfeitam seus cabelos, As drogas
inócuas que lhe causam efeito nocebo.
Deve ser porque sou menina nascida em berço esplêndido, E porque ganhei um emprego público de
alta remuneração, E porque com dinheiro fácil enriqueci e montei meu próprio
negócio, Reservo-me a fria indiferença de não lhe fazer uma única pergunta e
nunca olhar em seus olhos quando você conversa comigo, Como se minha falsa
amizade não lhe tocasse a alma, Tal como seu sarcasmo fere a minha, Você não
trabalha desde a aurora até a primeira hora de um novo dia? Não esconde sua
história e seu mundo numa estrela disfarçada nos céus? Não tem aversão à ilegalidade e a ela inteira se embuça em seus andrajos? Não arranca os dentes de seu filho
com um soco quando ele lhe levanta a voz?
Talvez sejam as músicas que você não
ouve, Os filmes aos quais você não assiste, E os livros que você não lê.
Deve ser minha grande lista de desafetos, Meu desprezo por todos os meus
contemporâneos, Minha desobrigação de expressar minha opinião sobre as
unanimidades, Como se alguém se importasse com o que falo, Como se eu soubesse
escrever tão bem como eles, Como se eles soubessem que eu existo, Não tem aí uma
sirene que alardeia minha entoação espiritual, Meu etéreo valor? Não tem aí um
suinocultor que me passe de porca a porqueira? Alguém que possa lamber as solas
de meus pés? Alguém que possa curtir comigo a catinga que exala do meu sovaco e
o auto endeusamento vomitado de minha boca?
Deve ser porque as fábricas pararam
de produzir desconfiômetros, As farmácias pararam de vender semancóis, As drogas nocivas que lhe causam efeito paulo coelho.
Mas quem você pensa que sou? Do tipo que se casa apenas por interesse? Que cobra dízimos de gratidão pelos amigos que te dou? Que exibe ao mundo todo a celebridade que me tornei? Reservo-me o sorriso artificial ao seu chato senso de humor e de nunca admitir em você qualquer valor cultural que sobrepuje minha riqueza material, Como se minha forçada hospitalidade não ferisse seu orgulho, Tal como sua autenticidade fere o meu, Você não gosta de aparecer com seu ridículo e pretenso conhecimento sobre tudo que se passa no mundo? Não se rebaixa uma única vez para que os outros se sobressaiam? Não enaltece meus predicados e nunca me liga para saber como estou? Não se toca com meu menosprezo à sua pobre existência?
Mas quem você pensa que sou? Do tipo que se casa apenas por interesse? Que cobra dízimos de gratidão pelos amigos que te dou? Que exibe ao mundo todo a celebridade que me tornei? Reservo-me o sorriso artificial ao seu chato senso de humor e de nunca admitir em você qualquer valor cultural que sobrepuje minha riqueza material, Como se minha forçada hospitalidade não ferisse seu orgulho, Tal como sua autenticidade fere o meu, Você não gosta de aparecer com seu ridículo e pretenso conhecimento sobre tudo que se passa no mundo? Não se rebaixa uma única vez para que os outros se sobressaiam? Não enaltece meus predicados e nunca me liga para saber como estou? Não se toca com meu menosprezo à sua pobre existência?
Deve ser os adornos de mau gosto que você não usa, Os dias preguiçosos nas loucuras e manias que você não viveu, As oportunidades que você nunca desperdiçou.
Deve ser porque não pertenço à turma que pré aprova
minhas opiniões, Porque não me esforço para gostar de alguém só por amizade ou
interesse, Porque não leio um livro só porque não gostei da cor de sua capa,
Como se um mundaréu de gente inteligente espera ávida pela minha próxima resenha,
Como se não me pergunto se alguém está lendo o que escrevo, Como se eu fosse um
gênio com sua característica excentricidade, Não tem aí mais espaço para minha
grandeza excessiva? Não tem aí uma terra fofa para eu miná-la como uma toupeira?
Alguém que possa beijar o chão que piso? Alguém que possa coçar comigo a caspa
que abunda meus cabelos e a comiserada arrogância enroscada em meus pentelhos?
Deve
ser porque somos todos carentes, Todos dependentes, Lixos levados pelos ventos.
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