terça-feira, 23 de maio de 2023

POLITICAMENTE ERRADO

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

Em Washington poderia sentar-me na cadeira ensebada do presidente e nos assentos viciados dos congressistas, Mas preferi ir ao velho teatro em Viena e sentar-me nos lugares favoritos de Hitler e Freud, Para sentir um pouco a loucura de um e a cura prescrita pelo outro, Que todos assentos ergam-se acima de todos traseiros, Em Londres poderia esfregar a bunda no trono da rainha e limpar meus sapatos no capacho dos americanos na Downing Street, Mas preferi ir a Liverpool escrever meu nome no muro do orfanato Strawberry Field e ficar frente a frente com Eleanor Rigby no seu banco de jardim, Que as medalhas dos Membros do Império Britânico sejam enterradas abaixo do túmulo de John, Na França poderia deitar-me na cama do Palácio de Versalhes onde Maria Antonieta dormia e subir ao altar de Notre-Dame onde Napoleão se autocoroou, Mas preferi entrar na casa vazia onde Joana D'Arc nasceu em Domrémy e na praça do mercado em Rouen onde ela foi queimada viva, Que o altruísmo erga-se acima de suas ambições, Na Itália poderia ir ao Vaticano ouvir o papa falar hipocrisias ao povo na praça e ao berço da Cosa Nostra na Sicília, mas preferi ir a Calcutá ouvir ecos dos lamentos de Ghandi e das noites escuras de Madre Tereza, Que a igualdade entre os povos não faça uns mais iguais que os outros, Em Israel poderia visitar todos os pontos turísticos e fictícios que movimentam a indústria da fé cristã, mas preferi ir a Atenas para ver o que restou da casa subterrânea de Sócrates e da prisão onde ele foi executado, Que a verdade vos liberte de uma vez por todas, No Brasil poderia ir ao Rio para assistir ao desfile das escolas de samba na Marquês de Sapucaí e a Brasília para assistir ao desfile das escolas de ladrões nas obras de Niemeyer, mas preferi ir às periferias das grandes metrópoles industrializadas para ver o povo levantar cedo para trabalhar e carregar o país nas costas, Que o berço esplendido pare de balançar e vos acorde desse sono eterno.

sexta-feira, 19 de maio de 2023

O DIVISOR DE ÁGUAS MUSICAIS

Texto de autoria de Alceu Natali. Direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

Bette Midler, americana, cantora, atriz, modelo e comediante, fazia faculdade no Havaí quando começou a ouvir os Beatles pela primeira vez. Ela se interessou pela música deles, mas não ficou muito entusiasmada. No entanto, se extasiou quando ouviu o álbum RUBBER SOUL. No verão de 66, ela estava trabalhando com um tipo de grupo itinerante de atores e o gerente de palco tocava o RUBBER SOUL dia e noite. E este álbum acabou por conquistar a Bette, liberou algo em sua imaginação que ela nunca tinha vivenciado na música popular. Ela se lembra disso como se fosse ontem. Bette confessou que se rendeu ao talento dos Beatles com este álbum, porque ele era uma avassaladora onda de entusiasmo e ideias originais. Depois desta experiência com RUBBER SOUL, Bette resolveu abandonar o teatro, começou a cantar em bares e tornou-se uma cantora e compositora. Ela  nunca foi do tipo de pessoa de se engajar em qualquer modismo passageiro. Mas os Beatles eram diferentes. Vieram para ficar para sempre. Eles tinham algo mais e a dominaram. Bette sempre ficava na defensiva, porque era cínica. Ficava à margem de tudo, só observando. Nunca se entregava ao fascínio de figuras populares. As celebridades eram sempre maquiadas com uma grossa camada de artificialismo. Mas os Beatles não. Eram autênticos. E vejam só, hoje ela é uma celebridade no mundo, por causa de RUBBER SOUL, por causa dos Beatles. Enquanto isso, um garoto de apenas 15 anos, aqui no hemisfério sul, já sacava o que a celebridade do norte não percebeu. Os Beatles eram um divisor de águas. Com o aparecimento deles a música passou a ser dividida em dois tipos: antes e depois dos Beatles. Cada vez que ele ouvia RUBBER SOUL ele não tirava os olhos da capa do álbum, procurando algum aspecto singular que a diferenciasse das demais. Será que são estes narizes alongados por entre os olhos? Eles parecem ser diferentes dos outros seres humanos! E os Beatles criaram um divisor de águas em sua própria música. Seus cinco primeiros álbuns marcaram a chegada deles à lua, com composições cativantes, românticas, de letras ingênuas que enlouqueciam as adolescentes. Mas eles queriam ir mais longe, muito mais longe, ir até a Marte. Mas como fazer esta transição sem privar a juventude feminina das cantigas de amor acostumadas ao luar? Como empreender uma viagem mais longa e arriscada sem comprometer a popularidade que conquistaram? Resolveram fazer um teste: mesclar baladas fáceis de serem lembradas e cantadas com letras e arranjos mais complexos, mais intelectuais, mais introspectivos, mais estranhos que Marte. E esse garoto aqui, menor de idade, já enxergava tudo isso. HELP é o último álbum romântico. RUBBER SOUL marca a transição do romântico para o psicodélico que começou com o insuperável REVOLVER. É por isso que o boy achava um barato John cantar a lírica e melosa GIRL e, ao mesmo tempo, a enigmática NORWEGIAN WOOD. Ele conseguia perceber a enorme diferença entre a inocente YOU WON’T SEE ME e a poderosa DRIVE MY CAR de Paul. E se todos sacaram o que o adolescente brasileiro descobriu em tenra idade sabem que os Beatles não foram só a Marte, mas deixaram o palco dos planetas internos e externos e acabaram saindo do sistema solar.

sábado, 6 de maio de 2023

O RISCO DA FÊNIX

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

ESCRITO EM 2019

Em meados do último mês de Abril de 2019, Kuriac voltou a fazer contato. Ele é um colega do antigo ginásio que não vejo há mais de meio século. Ele parece viver numa das estrelas Gliese, a mais de 50 anos luz do nosso planeta, me enviando mensagens por radiotelescópio que, de acordo com as leis da astrofísica, demoram milênios para chegar. Tudo que ele me escreve tem cheiro de bolor do passado, mas como o tempo é relativo, o teor de suas missivas versa sobre o nosso presente e são recebidas em tempo real. Kuriac me pergunta qual foi meu diagnóstico depois de uma quimioterapia de 16 semanas. Em Agosto de 2018, quando lhe disse que estava com câncer e seria submetido a uma cirurgia para retirar um tumor de 6 cm, ele emputeceu.'Mas que notícia desgraçada!' Ele acompanhou meu calvário somente à distância, de Agosto até agora, uótizapando com minha mulher, a guerreira Cecília, como ele a chama, lembrando-me de Antígona de Sófocles, reverenciada por Werner Jaeger em Paidéia: A Formação do Homem Grego, um livro que recomendei a ele. Quando lhe disse que Shakespeare se inspirou em Antígona para escrever Romeu e Julieta ele se interessou, não pela história de amor incondicional. Ele quer e vai filosofar e dissecar questões de desobediência civil, de desafio às autoridades. No mês do meu aniversário, a notícia que recebi foi menos furibunda. Minha oncologista confirmou que o nódulo no pulmão, acusado pela recente tomografia computadorizada, não é maligno, nem mesmo requer biópsia. Apenas acompanhamento com exames de praxe de tempos em tempos. 'Mas que notícia maravilhosa,' ele exclamou, 'alegrou meu sábado. Parabéns para você e para a Cecília que segurou com galhardia essa barra a seu lado!' Eu já me preparava para o inevitável e fiz uma viagem do espírito, como Gao Xingjian em A Montanha da Alma. Será que minha próxima tomografia irá revogar minha pena de morte, como no caso de Gao que foi, erroneamente, diagnosticado com câncer no pulmão? Espero que o carcinoma me conceda a manumissão definitiva. Enquanto meu atestado de alforria não for assinado, com firma reconhecida em cartório, não ouso sair por aí fogueteando. Há sempre o risco de dar chabu. Kuriac virtualizou na última idade. O malledeto não veio me visitar no hospital como prometera. Diz um ditado árabe que a primeira pessoa que vem lhe saudar num nosocômio é sempre seu melhor amigo. Você acredita no adágio americano 'A friend in need is a friend indeed?' Será que o verdadeiro amigo realmente aparece quando nos encontramos em dificuldades? Minhas experiências com esta máxima trazem mais dúvidas do que certezas, no que diz respeito à estima entre pessoas do mesmo sexo. Aliás, achei muito engraçado o que falou Oscar, o Mão Santa do basquete, numa entrevista a um programa esportivo: 'Não existe amizade entre homem e mulher, a menos que um dos dois seja feio demais.' Será? Bem, não me presto a esperar por um Godot de Samuel Backett. Não levo jeito para a inércia de Estragon e nem para a inquietação de Vladimir. Parafraseando Eça de Queirós, como não tenho mania francesa e burguesa de jogar as farinhas de regiões e raças no mesmo saco da civilização, quebrei a monotonia abominável do teto do meu quarto cancroide relendo algumas peças de minha juventude: Five Finger Exercise de Peter Shaffer, The Kitchen de Arnold Wesker e The Hamlet of Stepney Green de Bernard Kops. Danem-se os provérbios! Viva a verdade firme e assegurada, de que não pode se duvidar, princípio primeiro do cartesianismo! Ave Cogito, Ergo Sum! Salve a dupla Napoleon Solo e Illya Kuryakin! Kuriac nunca veio à minha casa. Cansei de convidá-lo para um papo e algumas taças de vinho. Eu entendo e respeito sua relutância em aquiescer aos meus convites. Talvez um encontro face to face desguarnecesse nossa solidão licomaníaca, nossas horas de entre lobo e cão, após nossas fadigas cotidianas da luz do dia, quando começamos a arquitetar pensamentos perversos e uivar nossos cogitos. Expor nossas velhas carcaças poderia inibir o que os nossos inconscientes liberam nas altas horas sem permissão. Para ciciar vícios basta esta plataforma. São tesouros escondidos do mundo, exceto dos hackers que abundam nas redes sociais e das grandes potencias espiãs que violam a privacidade de todos internautas. Num rendez-vous tetê-à-tetê nossos olhares poderiam descuidar nossos segredos guardados a medo. Melhor permanecermos os estrangeiros de Albert Camus. Somos agentes ultrassecretos, cada um cuidando de sua rotação, um da terra, outro da lua, e o sol é para todos, conforme Harper Lee expõe de maneira brilhante no seu livro To Kill A Mockingbird. Kuriac considerou boas minhas novas, mas, no meu entender, elas ainda são interinas, por isso não esperei receber alvíssaras. Kuriac, no entanto, deu o meu caso cancerígeno por encerrado e propôs-me a volta à normalidade, muito diferente da definição daquele beneditino apocalítico no livro O Nome Da Rosa de Umberto Eco, segundo o qual 'normal é a preservação do conhecimento e não a busca do mesmo, pois não existe progresso na história do conhecimento, mas meramente uma contínua e sublime recapitulação.' Kuriac quer o retorno à vida na sua plenitude, às ironias, e ainda aconselha: 'Sorria muito, sorria sempre, mesmo que seja com sarcasmo, com desdém. Cultue a disposição sombria do espírito ao escárnio. A misantropia se enternece.' Sobre quais aversões podemos falar? Não podemos ter uma conversa menos filosófica do que humana do tipo Xenophon: Conversations With Socrates: Socrates’ Defence, Memoirs Of Socrates, The Dinner-Party, The Estate Manager? Não, ainda não podemos. Kuriac tem na mão e na alma o retorno ao ordenamento moral: 'A excitação pela luxúria não deve ser tratada com amor, e sim com toda a volúpia e despudor, num frenesi animalesco da carne uivante no cio doentio.' E, em seguida, retoma a fraternidade: 'Vou tomar um vinho branco em homenagem à sua saúde!' Não devo te agradecer, Kuriac, em respeito à parrésia dos gregos, lembra-se? Para, pelo menos, celebrar a sua solicitude e o meu euangélion provisório, esforço-me por alegrar-me com esta pilhéria: 'O que faço com o caixão que minha sogra me enviou de presente?' A resposta veio em segundos: 'Mete ela dentro e joga no incinerador, depois espalhe as cinzas ao vento. Mas sempre há o risco da Fênix!'