Uma pessoa que eu conheci há muito tempo disse-me: Quando você empresta dinheiro a um amigo, você perde ambos: o dinheiro e o amigo. Esta afirmação incisiva pôs-me a pensar o que, realmente, é um amigo, e até mesmo a duvidar se existe tal coisa chamada amigo. Quando eu era jovem, eu achava que amigos existiam de verdade. Eu sempre pensava que um verdadeiro amigo é, entre outras coisas, aquele que aceita ser seu fiador quando você precisa fazer um empréstimo ou alugar um imóvel. Minha esposa discorda, veementemente, de mim. Ela é da opinião de que questões financeiras são muito pessoais e só podem ser tratadas em família. Ela lembrou-me daquela pessoa da frase contundente: Se você quer perder um amigo, basta você pedir dinheiro emprestado a ele ou pedir para ele ser o seu fiador. Se um amigo não pode emprestar dinheiro ou ser fiador de alguma coisa, então, pergunto-me: para que serve um amigo? Confesso que não sei. E como não sei, tendo a não acreditar mais na existência de amigos. Sinceramente, eu gostaria muito que minha paráfrase daquele provérbio das bruxas fosse verdade: Eu não acredito em amigos, mas que eles existem, existem'. Eu jamais vi uma bruxa. Também nunca vi duende, fantasma, disco voador ou saci-pererê e, só agora, na velhice, começo a me dar conta de que eu nunca vi um amigo. Por outro lado, eu tive o privilégio de ouvir, de certos pretensos amigos, desculpas esfarrapadas, do arco da velha, que rivalizam-se com as mirabolantes máximas que encerram algumas parábolas do cristianismo e com os discursos do Lula. Um dia, eu precisei de um fiador. Antes mesmo de conhecer minha esposa e suas opiniões, eu procurei a família, e me dei mal. Maior que a decepção de ouvir um não é a humilhação de ouvir frases das mais grotescas, que fazem você sentir-se um palhaço no meio de um picadeiro. Um desses membros de minha família, bem de vida, com muitos imóveis próprios na cidade e fora dela, lamentou-se, amargamente, por não poder ser meu fiador porque nenhum de seus bens estava em seu nome. Só faltou ele chorar por ter perdido uma grande oportunidade de ajudar-me. Mas eu fui ingênuo demais. Na verdade, ele não era da minha família. Ele era apenas um parente. Eu cometi um erro e dei um grande susto no meu desprevenido parente. Logicamente, ele tinha medo que eu não pagasse o aluguel e sobrasse para ele. Fui cândido demais ao pensar que um simples parente fosse confiar em mim. Quando recebi aquele não, coloquei-me no lugar dele: Pô, esse sujeito é cara de pau mesmo. Porque ele não vai pedir ajuda para alguém da 'família' dele? O problema é que ninguém mais na 'família' dele confia nele e ele está apelando para qualquer um e deve achar que sou um otário. Ele só lembrou de mim agora, na hora do aperto. Mas eu, se estivesse no lugar dele, não sentir-me-ia apenas um otário, mas teria um pouco de vergonha também. A justificativa que ele me deu para não ser meu fiador levou-me a pensar: Eis aí um verdadeiro altruísta! Dono de tantos bens! E ao invés de querer todos eles para si e declará-los no IR, reparte-os entre os parentes. Meu daimon sussurra-me no ouvido: Acorda! Em que país você pensa que vive? Ele está certo. Eu preciso ser menos inocente. Afinal, será que existem otários no Brasil que declaram todos seus bens no imposto de renda? O pior é que existem e eu sou um deles, talvez o único anão adormecido neste gigante vivaldino. Um outro parente meu foi um grande advogado. Aposentou-se como procurador de um importante órgão do governo federal. Ele disse-me que não poderia ser meu fiador porque andava com uns probleminhas com seu imposto de renda. Esta desculpa foi pior do que uma parábola de evangelho, já utópica em si, e ainda adulterada pela igreja tardia, tão engraçada como o famoso nunca antes na história deste país' do sapo barbudo. O que ele disse-me é o mesmo que ouvir o papa dizer-lhe: Meu filho, eu não posso abençoá-lo porque ando tendo uns probleminhas com Deus. Eu sei que gozar da reputação do papa é coisa batida e não tem mais graça. Nos dias de hoje, o único que não deve ter nenhum problema com Deus é o demônio. Apelei para gente de fora, fora da família, e escolhi um daqueles que sempre considerou-me seu melhor amigo: Falei com meu sócio e ele achou que seria um problema para nós, pois muitos que são grandes amigos nossos pediram-nos a mesma coisa e nós declinamos. Portanto, se abrirmos uma exceção para você, teríamos que abrir uma exceção para todos. Eu senti-me aliviado ao saber que eu não era o único e melhor amigo a receber um não daquele grande amigo meu. Eu raramente vejo este meu amigo e jamais sou visitado por ele, por mais que eu o convide. E ele também nunca convida-me. E o mesmo se passa com todos aqueles que disseram serem meus amigos. Então, deduzo, que eu sou um problema, ou o inimigo a ser evitado. Hoje, tenho com todos aqueles que outrora pensei serem meus amigos uma amizade platônica, ou, para usar um termo mais contemporâneo, telepática. Não nos vemos, não mantemos contato por telefone e nem por correio eletrônico. E as forças mentais deles andam bem atrofiadas. Aí vem minha esposa de novo: Eu não te disse que para perder um amigo... Mas, neste caso, ela não tinha tanta razão. Na verdade, aquele sujeito que tem um sócio nunca foi meu amigo, nem passou perto disso que eu ainda não sei o que é. A gente demora para descobrir, mas descobre. Pense nisso: um dia liguei para aquele meu parente advogado, para dizer-lhe que eu havia casado de novo e mudado de cidade. Ele respondeu-me: Não posso falar com você agora porque há algumas pessoas aqui na minha casa fazendo uns consertos. Te ligo outra hora. Ele não tinha meu novo telefone e não sei se ele procurou saber quem o tinha. Talvez ele tivesse identificador de chamada e gravado o meu número. Ninguém sabe. Ele deve ter feito uma reza brava para que eu nunca mais ligasse para ele e Deus o ouviu. Abaixo do amigo vem o conhecido. Ele é um grande amigo de um amigo ou de um parente seu. Você deve lembrar-se daquele chavão: Se você é amigo de fulano de tal então você é meu amigo também. Isso é mais perigoso do que aquele ditado: mulher de amigo meu, para mim é homem. Certa vez, precisei dos serviços de um conhecido. O serviço era demorado e caríssimo. Por isso, pedi para pagar em prestações mensais, de acordo com minhas limitações financeiras. Mas, de repente, minha vida deu uma guinada de 360 graus. Divorciei-me, casei-me de novo e mudei-me de cidade por uns tempos, e não é que, no frenesi daquela repentina mudança, acabei esquecendo-me de pagar o saldo devedor pelos serviços prestados por aquele conhecido! Não deu outra, a mulher dele ligou para minha casa e desceu o nível para valer. Deixou os escrúpulos de lado, se é que um dia ela os teve, e mandou ver: Porra, você deu a maior mancada comigo. Este mês deixei de pagar a mensalidade da faculdade de um de meus filhos por sua causa. No dia seguinte, consegui um empréstimo num banco e enviei o pagamento. Era mais seguro pagar juros exorbitantes a um banco do que ter uma conhecida tão ameaçadora como aquela! Ela estava apenas obedecendo ordens do marido que decidiu por um fim à vida hollywoodiana que, segundo ele mesmo disse, a família dele estava levando. Tenho certeza que ela jamais soube que os serviços, a preços bem salgados, prestados pelo seu marido com garantia de um ano não duraram nem seis meses. Há tempos atrás, fui a uma grande festa, grande mesmo. Da minha família. Sem que eu soubesse, meu nome foi colocado no convite como um dos anfitriões, mas lá fui tratado abaixo de um garçom que sempre passa desapercebido. Quem se lembra da cara de um garçom depois de uma festa? Ninguém! A menos que ele tenha escorregado, levado um tombão no meio do salão, caído de bunda e com a cara enterrada no bolo! Eu não dei um vexame destes, mas também não dei motivos para ser odiado por tanta gente ao mesmo tempo! E lá estava aquele conhecido que pôs um basta ao estilo de vida cinematográfico de sua família. Quando ele me viu, sorriu descontraído, mas não conseguiu esconder seu desconforto. Eu era uma pessoa que não deveria estar lá, daí a surpresa, mas eu estava sereno, com meus pensamentos bem longe daquele lugar. Este conhecido faz parte daquela religião que diz fazer o bem sem olhar a quem. Sua esposa, aquela que ficou incumbida pelo juiz de paz da festa, seu marido, de dar o esculacho em mim, fingiu que não me viu. Aliás, nesta festa, havia vários desses conhecidos que um dia foram a festas na minha casa, sentaram-se à minha mesa, comeram e beberam comigo, deram tapinhas nas minhas costas. Mas nesta festa eles não enxergavam-me. Eu devia estar sob o efeito da invisibilidade. Mesmo assim, minha aura constrangia-os. E por quê? Talvez por eu ser um criminoso. Quem divorcia-se torna-se um criminoso. A confraria dos amigos, parentes e conhecidos dá valor aos heróis, aqueles que, estoicamente, mantém um matrimônio falido sob uma bela fachada de felicidade que costuma arrancar elogios dos mais antigos em público, mas sangue e lágrimas entre quatro paredes. O mundo está dividido entre heróis e vilões. Não existe um meio-termo. Este divisor da sociedade onde eu vivo é tão pragmático quanto aquele jargão americano: Ou você é um vencedor, ou você é um perdedor. Eu faço parte da turma dos vilões e dos fracassados. No final das contas, eu senti muita pena de um humilde e nobre casal que permitiu que eu sentasse à sua mesa, a única que sobrou para mim naquela grande festa. Todos conheciam o casal, mas ninguém veio cumprimentá-lo por causa da minha repugnante presença. Mas eu não disse que eu estava invisível? Estava, sim, mas acontece que esses meus amigos e conhecidos são pessoas especiais, afortunadas, vitoriosas, brilhantes e, ainda por cima, têm o dom de enxergar a aura dos outros. Eles sentiram repulsa ao ver a minha alma aquebrantada. Eis ali um espírito nefasto e obsessor, pensou alto um deles. Mas por que estou cá a falaire desta festa, oras pois, uma vez que o tema aqui é sobre Amigos? Voltemos, então, ao assunto. Você deve estar se perguntando: Afinal, o que esse negócio de ser fiador de alguém tem a ver com amizade? Nada! Quer uma prova? Há 40 anos atrás, eu conheci uma alemã que deixou seu país para trabalhar numa empresa em Santa Catarina. Eu trabalhava na filial de São Paulo dessa empresa e minha relação com esta alemã não passou de um simples cumprimento quando eu fui apresentado a ela por ocasião de meu treinamento de um mês em Blumenau. Um ano depois, esta alemã apareceu em São Paulo e procurou-me: Arrumei um emprego noutra empresa aqui em São Paulo. Estou alugando um apartamento, mas eles querem um fiador que tenha renda e propriedade. Não tenho ninguém. Você pode ajudar-me? Eu não tive dúvidas. Endossei um contrato de aluguel de três anos e dei como garantia minha casa. Depois dos três anos de contrato, nunca mais vi esta alemã. E vocês perguntam: Mas por que vocês não se tornaram amigos? Porque o meu papel de fiador não era pretexto para iniciar isso que vocês chamam de amizade. E vocês tornam a me perguntar: E por que você se arriscou tanto com uma estrangeira que você mal conhecia e tinha visto uma única vez? Porque ela estava só. Eu, ao contrário dela, sempre estive rodeado por um montão de parentes, amigos e conhecidos, todos visíveis aos meus olhos, mas refratários aos meus sentimentos. Estas pessoas que adoram rótulos religiosos do tipo não deixo minha mão esquerda saber o que a direita faz estão em toda parte, exceto onde a caridade se faz necessária. Elas são como uma das divagações do narrador de um livro que estou escrevendo: oportunistas que aparecem melhor no dia de servir caldo e água benta, no dia de dar bênçãos com mãos levianas. Eu gosto muito de lembrar-me daquela alemã fria, divorciada, mas não criminosa como em nossa sociedade, e vencedora, que aventurou-se no Brasil, com minhas palavras preferidas de Bob Dylan: on her own, with no direction home, like a complete unknown, like a rolling stone. Eu gosto de lembrar de meu pai, Armando, que eu pouco conheci e que teve que submeter-se a uma cirurgia para extrair um tumor cancerígeno. Seu médico disse-me que ele não duraria um ano. Ele fez quimioterapia durante mais de seis meses até que surgiu a metástase no pulmão. Eu o visitava diariamente, de segunda a segunda. Ele não desconfiava que sua morte era iminente. Ao contrário, ele desconfiava que talvez eu estivesse querendo pedir-lhe dinheiro emprestado de tanto que eu o visitava. No seu último dia em casa, quando ele teve uma crise aguda e fatal, seu médico pediu-me para que eu o internasse, imediatamente, num hospital, onde ele permaneceu com vida numa UTI somente duas semanas. Eu ajudei a levantá-lo do sofá com muita dificuldade e disse-lhe: Vamos lá, faça uma forcinha. Eu só vou levá-lo a um hospital para medicá-lo e acabar com esse mal estar. Ele mal conseguia falar de tanta dor. Mesmo assim, fez um esforço enorme para dizer-me: Se você estiver precisando de dinheiro, não se acanhe, eu não te empresto, mas te dou. Ele fez aquilo que todos não são capazes de fazer: ir de encontro ao necessitado antes que ele tenha que se humilhar e pedir, ainda que ali, naquele momento, ele, condenado pelo câncer, fosse o único necessitado. Ele foi aquilo que todos se orgulham de dizer que são, mas nunca foram. Eu continuo não sabendo o que são amigos e para que eles servem. E como não sei, continuo não acreditando neles. Se eles, realmente, existem, eles devem ser bruxas, ou tão são chamados de Armando. E eu conheci somente um Armando em toda minha vida. Este Armando que morreu ofereceu-me sua amizade a vida inteira, mas eu percebi isso tarde demais. E na hora de sua morte, ele teve mais dignidade do que todos os que conheci e que ainda estão vivos. Outro que morreu e que foi um deus para os espíritas chamava-se Chico Xavier. Para mim ele foi apenas um criptomaníaco e bem abaixo de meu pai que ofereceu-me dinheiro às vésperas de sua partida para a qual ele não atinava. Logicamente, o Chico não foi um crápula como eu e a maioria de nossos líderes religiosos. Eu o cito aqui apenas porque gosto muito de uma frase dele que diz respeito à minha marginalidade: Criminoso é cada um de nós que foi descoberto. O narrador do meu livro, por sua vez, parafraseia o Chico assim: Criminosos somos todos nós ainda não descobertos. Eu continuo não sabendo o que são os amigos, mas, com o tempo, descobri tudo o que eles não são. Talvez, amigo seja este tipo de pessoa que está morrendo e, mesmo assim, esquece de si e oferece ajuda sem que lhe peçam. Talvez, amigo seja Deus. Eu sou ateu de carteirinha, mas tenho a convicção de que, se Deus existe, então ele deve ser aquilo que vocês chamam de meu melhor amigo. Esta convicção advém de certos acontecimentos estranhos na minha vida. Sempre que estou combalido, nocauteado e jogado na lona, sou salvo pelo gongo. No entanto, o gongo é silencioso, invisível e anônimo. Isso deve ser obra de algo maior que um amigo. Eu agradeço, não sei a quem, mas agradeço. Mas não abro mão de minhas convicções. Nasci e vou morrer com elas. Se Deus existe e é este gongo tão silencioso, ele deve adaptar-se às minhas necessidades e não eu às dele. Se ele for, realmente, um amigo, ele não vai acabar com minha sorte só por causa de minha irreverência. Amigo que é amigo não abandona. Não é isso que vocês todos dizem? E o capeta do meu lado não perde a oportunidade para tirar um sarro:
É isso mesmo. Afinal, amigos são para estas coisas.
Eu pergunto:
É mesmo? Que tipo de coisas?
Ele responde:
Estas coisas que falam por si mesmas!
E eu finalizo:
Se você veio aporrinhar-me com sofismas vá procurar outro.
Mas o tinhoso quer ficar com a última palavra:
Que estresse é esse, cara? Só estou tentando ser seu amigo!
No final das contas minha esposa sempre esteve certa porque Deus realmente escreve certo por linhas tortas. Ela estava certa porque um cunhado meu que era a última pessoa na face da terra de quem eu esperava alguma coisa, disse-me há muito tempo:
Eu não quero ser seu fiador. Quero ajudar-te com dinheiro.
Constrangido, eu repliquei:
Só se for emprestado até quando eu puder devolve-lo.
Bravo, ele contestou-me:
Emprestado não. Dado! Na minha família não existe o verbo emprestar. Existe o verbo ajudar alguém por uma boa causa.
O equivalente em inglês para o nosso Deus escreve certo por linhas tortas é Deus obra por meios misteriosos. E este meu cunhado é bem misterioso. Eu o vejo a cada 3 anos e olhe lá. Ele não é Deus, nem um Armando, mas está muito acima de todos aqueles que um dia me chamaram de amigo. Um provérbio americano sobre amizade é certeiro: A friend in need is a friend indeed. A rima de need com indeed é forçada, mas é justamente nesta rima onde se encontra a única verdade sobre amizade. O provérbio, traduzido livremente, significa Um amigo em dificuldade é um amigo de verdade. O sentido é óbvio: É na hora da dificuldade que descobrimos quem são nossos amigos de verdade. Nos meus momentos de maior dificuldade, os que pensei que fossem meus amigos de verdade simplesmente desapareceram deixando um rastro de desculpas das mais esfarrapadas. E para encerrar e deixar o coisa à toa mais pê da vida comigo, aqui vão mais 2 petardos:
1) De Outubro de 2020 até este mês de Fevereiro de 2023, vários amigos virtuais do Facebook, que não conheço pessoalmente e com os quais nem mesmo conversei por telefone, me tiraram, literalmente, da falência total. 2) Na pior fase de minha vida, que já dura mais de 4 anos, toda gente que conheci presencialmente e que se dizia meus amigos saíram pela tangente e desapareceram
num passe de mágica do Mandrake quando eu lhes pedi ajuda.
Well, I may look knocked down today, unemployed, heading to 73 next year and still fighting a cancer, but I never give up. I'm still standing, dusting off, turning the corner, and moving on, bleeding, sweating and shedding tears, but not swearing. Hard feelings are a shit!