sábado, 25 de maio de 2024

O ANO DO MACACO

Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.

Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.

Cito aqui um parágrafo da crônica ‘O cinismo dos EUA e o direito ao vale-tudo de Israel e Hamas’, de Marcos Augusto Gonçalves, publicada no jornal Folha de São Paulo no dia 26 de Outubro de 2023: '‘A explosão de duas bombas atômicas sobre duas cidades japonesas pelos Estados Unidos, em 1945, sem nenhuma distinção entre crianças, civis e alvos militares, talvez tenha sido o mais bárbaro dos crimes de guerra que se tem notícia. Foi praticado e continua a ser justificado por alguns, mal e porcamente, em nome da paz e da democracia ocidental. Haveria outras maneiras de demonstrar o poderio da rosa estúpida e inválida que não explodi-la sobre Hiroshima e Nagasaki’'. Neste conto, escrito por AustMathr há muitos anos, ele ‘não acha que talvez’, mas afirma, categoricamente, que as duas bombas sobre Hiroshima e Nagasaki são, sem dúvida nenhuma, não apenas um crime de guerra, mas o maior genocídio já praticado na história da humanidade. E os americanos NUNCA foram levados a júri. O pior é o cinismo americano ao dizer que praticaram aquela atrocidade para encurtar a guerra e poupar vidas de seus heroicos soldados, e continuam, como diz Marcos Augusto Gonçalves, ‘'com suas políticas de conveniência embrulhadas em retórica de defesa do "mundo livre". Somente em Hiroshima, das 150,000 pessoas que foram mortas, 95% eram mulheres e crianças! Os americanos queriam apenas testar os efeitos que uma arma nuclear causam ao ser humano. E conseguiram! Agora eles sabem quantas mulheres e crianças eles podem assassinar em massa! Há mais motivações desumanas e consequenciais horríveis dessa perversidade que os americanos varrem debaixo do tapete hipócrita da mentirosa e charlatã democracia que eles inventaram para os ingênuos. Muito bem, vou parar de dar spoilers sobre mais este conto de AustMathr. Ainda não encontrei a palavra correta para definir esta experiência de AustMathr. É uma mistura de sonho lúcido com viagem no tempo e com convergência de 3 conceitos humanos que não existem: presente, passado e futuro. 

Inglesa Luso-Chinesa 

28 de Outubro de 2023.


Estávamos na selva há quase dois meses, desde o começo de Dezembro, molhados das torrentes que não distinguiam o dia da noite, das águas encorpadas de barro dos rios que empastavam a roupa no corpo, o cabelo sob o capacete, cheirando a mofo. Estávamos esgotados, infectados e até mesmo imunizados por todos insetos da região que deviam nos identificar pelo tipo sanguíneo. Dormíamos poucas horas a cada dois, três dias. Eu ficava sempre olhando para o céu nublado esperando ver queima de fogos celebrando a passagem do ano. Quem sabe um de nossos espanadores passasse pela área cegando a escuridão com mil e quinhentas labaredas por minuto. Ou então umas de nossas mortes sussurrantes com suas enormes línguas de fogos em forma de leque que viajavam longe e deixavam rastros resplandecentes até desparecerem como estrelas cadentes, depois de, literalmente, dizimarem todas as formas de vida num raio de um km. Já devíamos estar no final de Janeiro e não vi nenhuma comemoração, nem do ano novo solar, nem do novo ano lunar. As nuvens que desaguavam estacionavam nas alturas e esperavam ver um espetáculo de artifícios pirotécnicos. Eu tinha cocaína e papelotes de maconha suficientes para mais umas duas semanas. Deviam faltar poucos quilômetros para chegarmos ao principal posto de comando. A mata fechada começava a se abrir, as árvores mais grossas espaçavam-se e bem lá no fundo do horizonte já se podia ver pequenos clarões de civilização pulsando por entre a vegetação. De repente, sofremos mais um daqueles ataques súbitos. Atiramo-nos ao chão e fizemos dos arbustos rasteiros trincheiras improvisadas. Não tínhamos nenhuma ideia de onde partiu o bombardeio. Estranho foi que este não era como as costumeiras investidas de nossos adversários e mais parecia uma  das nossas, como fogo amigo. Mas a prova de que não era foi a forma como fomos facilmente identificados naquele negrume e alvejados com precisão, com a certeza de que não estávamos sendo confundidos com os nossos inimigos. À noite, costumávamos varrer o perímetro com holofotes infravermelhos que nos permitiam identificar a localização exata dos nossos adversários sem que eles soubessem que haviam sido descobertos. Em seguida, os holofotes eram revertidos à luz visível, deixando nossas presas sob a mira implacável de nossos morteiros. Agora, estávamos na posição inversa. Eu via até mesmo holofotes sendo usados para rebater luz nas nuvens para melhorar a visão de patrulhas em terra e pelotões próximos utilizando telescópios. Eu me via cercado de claridades por todos os lados e as bombas que caiam sobre nossas cabeças sem parar transformavam aquele sedimento úmido, infestado, abafado e caliginoso no verdadeiro inferno do qual falavam-me quando era criança. O meu companheiro do lado esquerdo disse-me:
Temos que fazer alguma coisa rapidamente senão vamos morrer. Eu sei como sair daqui. Siga-me.
Ele falou-me com voz de superior, mas bem amistosa. Eu tremia de medo e agarrei-me ao uniforme daquele que parecia ser de patente mais alta e deixei-me ser arrastado por ele. Talvez só ele percebeu que todos estavam mortos e que sobraram só nós dois. Borrei as calças de pavor e não largava de meu companheiro. Rastejamos por quilômetros, noite adentro, feito répteis ainda não adaptados ao chão da floresta, nos esfolando, com bocas abertas e esbaforidas, engolindo mato e insetos e eu socando cocaína nas narinas. Os insetos também estavam mais preocupados em bater em retirada do que em fazer a habitual refeição noturna. O estouro dos foguetes impulsionava-os à nossa frente. Num dado momento, meu companheiro ergueu-se com serenidade. Ainda deitado, olhei para trás e percebi que não havia mais bolas de fogo no céu. Só ouvia a cantoria dos costumeiros noctâmbulos e famintos parasitas, agitados com  o atraso do jantar. Começamos a caminhar. Notei que a selva havia ficado para trás. Abrira-se à nossa frente uma enorme clareira, mas não era um vilarejo. Era uma imensa área desolada, com apenas um sinistro edifício bombardeado e abandonado. Meu companheiro fez sinal para que eu esperasse e, com cautela, olhando para os lados, aproximou-se furtivamente do prédio e, à sua entrada, deu sinal para que eu viesse e despareceu ao subir as escadas. Apertei os passos com as pernas bambas para alcançá-lo. Quando cheguei no topo do primeiro andar, surgiram dois cachorros dobermann atrás de mim, galgando dois degraus de cada vez, prontos para atacar-me. Eram bem mais velozes do que eu e iam devorar-me. Gritei. E o meu companheiro falou lá de cima
Feche a porta atrás de você.
E de fato havia portas de metal que separavam os andares. As duas feras, bravas, raspavam a porta, ensandecidas, com unhas ruidosas, como se soubessem que podiam abrir um buraco através dela. Continuei a subir. Percebi que as escadas eram feitas de metal sólido, com várias perfurações circulares que permitem enxergar através delas, como aquelas escadas e andaimes dentro de fábricas. Enquanto passava de um degrau para outro, sentia firmeza e segurança. Cheguei ao último andar. Um enorme salão vazio, sujo, com vários objetos quebrados e espalhados pelo chão. E lá estava meu companheiro, sentado no que sobrou do batente da janela, uma perna para fora, outra sobre o beiral e dobrada, servindo de apoio para seu cotovelo que levava a mão à cabeça de olhar perdido, estático, contemplando a paisagem. Assim que esbocei dirigir-lhe a palavra, ele saltou, assustado, levou o indicador aos lábios a  pedir-me silêncio, e apontou a metralhadora para a porta que dava acesso à escada. Ouvi passos acelerados e destemidos de quem sabe onde quer chegar. Bem à nossa frente despontou um jovem soldado, com menos de 20 anos, louro, uniforme intacto e limpo. Sorridente, mas respeitoso, ele bateu continência e disse:
Recruta apresentando-se ao comandante para ser levado ao front.
Descansar, recruta. Por que você quer ir ao front?
Senhor, meu avô morreu na primeira guerra mundial, meu pai na segunda e, seguindo a tradição da família, eu devo lutar até a morte nesta.
Está bem, amanhã cedo te levarei ao front. Descansar!
Obrigado, senhor!
Como se estivessem seguindo o script de um filme, cada um, naturalmente, procurou um canto para se recostar. Mantive-me de pé, aproximei-me do companheiro que passei a chamar de comandante, pois era clara sua ascendência sobre nós, mas ele antecipou-se às minhas perguntas.
Soldado, estamos cansados e precisamos dormir. Amanhã temos uma longa jornada. Temos que levantar cedo para levar este herói ao front e depois voltaremos a este edifício e, então, vou mostrar-lhe algo que você nunca viu. Boa noite.
Eu deveria estar morto porque é impossível sobreviver a uma investida tão implacável como a desta noite. É impossível acreditar em tudo que ocorreu desde a ofensiva de nosso inimigo até chegarmos neste prédio. Se estou morto então sou um daqueles espíritos que, segundo os adeptos da vida após a morte, permanece no local de desencarne e segue vivendo normalmente. Será este também o caso daquele jovem herói e deste estranho comandante que continuam existindo sem saber que já morreram? Depois de tantos acontecimentos utópicos que vivenciamos não há nada mais quimérico do que este comandante planejar um retorno a este edifício para me mostrar algo que nunca vi antes. Pior do que morrer sem saber é sentir o gosto amargo de uma impensável derrota. Quando me alistei voluntariamente para esta guerra estava preparado para tudo, logicamente para uma vitória inapelável em primeiro lugar, mas não para morrer. Vim aqui para lutar pela liberdade dos povos, para evitar que um efeito dominó alastrasse o mal por toda uma região e a subjugasse. Meus governantes me passaram a certeza de que esta é uma guerra já vencida e que precisamos só de um pouco de tempo e paciência para voltarmos para casa com mais louros de nossos sucessivos triunfos. Foi a plena consciência de nossa esmagadora superioridade no mundo, comprovada pelos nossos êxitos em conflitos mundiais e regionais recentes, que levou a maioria de jovens como eu a se apresentar para servir minha nação por livre e espontânea vontade. Apesar de nossa supremacia, teremos baixas. Numa guerra sempre há baixas dos dois lados. As nossas serão mínimas. De acordo com meus superiores, bem menos de meio por cento retornará em caixões e no máximo dez por cento sofrerá ferimentos, graves e leves. Menos de meio por cento é um número desprezível, mas sempre rezei para não fazer parte dele. Seria o mesmo que ter a sorte de ganhar sozinho na loteria. Não desejo nem este azar nem esta sorte na vida. Estes dez por cento de inválidos me dão calafrios. É um percentual considerável. Uma em cada dez pessoas é canhota, e eu conheço muitos canhotos. De acordo com alguns pseudo cientistas, é de uma em dez as chances de eu estar sonhando neste momento. E se estes fanáticos por fantasias científicas estiverem certos? Posso estar inconsciente após ter sido gravemente ferido e tendo pesadelos. Se não estou morto e nem sonhando, então tudo isso se deve aos alucinógenos que tomo em grandes quantidades todos os dias. E hoje abusei na quantidade de tanto medo de morrer. Eles são imprescindíveis. No início me revoltei com a necessidade de ter que usá-los, mas hoje não mais suportaria estar aqui sem eles. Apesar de nossa determinação e valentia, os soldados,  recrutas e veteranos, receberam um arsenal de drogas para poder enfrentar o inimigo. Como pode uma superpotência como a nossa ter que tomar drogas para ter coragem de enfrentar nossos inimigos? Eles são pequenos e frágeis, ratos de esgotos que fazem tocas nas florestas tropicais e nos surpreendem com frequentes emboscadas. Eles são covardes. Não têm coragem de lutar em campo aberto como  nós. Poderíamos dar uma solução final a este paizinho, sair daqui e jogar bombas atômicas sobre eles, como já fizemos com outra nação. Fui para um dos cantos e me recostei. Não esperava dormir nesta noite. Minha adrenalina estava muita alta e meu coração batia forte. Estava extremamente aturdido e não atinava direito para o que estava acontecendo. Voltar para cá para ver algo que nuca vi? Depois de tudo pelo que passei, de tudo que vi, agora espero ver apenas o paraíso. A noite ainda não tinha terminado para mim. Na verdade, não tinha certeza se minha  vida ainda não tinha terminado também. Pela primeira vez estive frente a frente com a morte e, em virtude da sucessão de eventos misteriosos que me acompanharam até aqui, não sei se morri e estou em alguma outra dimensão, mas ainda preso à guerra, ou se escapei e estou delirando com o trauma de ter chegado tão próximo do fim, se estou sonhando ou se estou endoidecendo com uma overdose. Sentei-me num canto como fizeram os outros dois e eles já pareciam ter entrado em sono profundo em poucos minutos. O comandante tinha um sono sereno, mas um rosto sofrido e judiado, rosto de muitas guerras, longe de casa. De onde será que ele veio? Não conseguia dormir e continuei refletindo sobre tudo que aconteceu. Participei de muitas batalhas, sempre em posição de vantagem em relação ao inimigo, embora algumas vezes estivesse perto de ser atingido. Mas desta vez, nesta noite, fui surpreendido e completamente dominado pelo inimigo, à mercê dele, esperando morrer a qualquer instante. Meu pelotão todo foi impiedosamente dizimado neste ataque surpresa, exceto eu e este estranho soldado que fala e age como um oficial e que jamais tinha visto em toda minha companhia que se dividiu em três grupos rumo a diferentes posições estratégicas na mata. O horror da guerra esteve sempre presente em minha mente a cada segundo de nossas incursões pela selva, mesmo nas raras e poucas horas de sono, sempre atormentado por pesadelos fragmentados e assustadores. Quando a gente se vê em meio a um inferno como eu me vi nesta noite, cercado de explosões ensurdecedoras e intermitentes, você não espera outra coisa senão a morte. Não há tempo para rezar e você se despede rapidamente da família que nunca mais verá e se encolhe torcendo para que a morte seja bem rápida, com balas ou uma granada na cabeça. Os segundos que antecedem a morte parecem uma eternidade queimando numa fogueira medieval. Não há tempo e nem esperança por um milagre. Nem mesmo o desespero incontrolável traz à mente qualquer ideia de um possível milagre. Mas este portento surgiu na figura deste sinistro soldado que sabia como me tirar daquele martírio. Em meio ao pânico, você se agarra à menor possibilidade de sobreviver. E eu agarrei-me àquele desconhecido soldado. Mas como ele conhecia o caminho pela mata fechada, ainda mais se rastejando na escuridão? Como ele sabia como chegar a este prédio assombroso numa clareira tão distante e que lhe parecia tão familiar? E aqueles dois cães que me ameaçaram à entrada e, aparentemente, não importunaram o comandante? O que fazem dois dobermanns guardando um edifício abandonado? E este jovem recruta que surge misteriosamente do nada e sabe onde e a quem se apresentar para ser levado ao front? Nesta guerra não há front. Ela está em toda parte. Na selva, nos vilarejos e nas áreas urbanas. E o que dizer da estranha tranquilidade deste recinto e destes dois companheiros, especialmente do comandante, que não é, de fato, comandante do meu pelotão? Acabei vencido pelo cansaço e dormi com a última frase do comandante em minha mente: voltaremos a este edifício e, então, vou mostrar-lhe algo que você nunca viu. O sol ainda não tinha nascido quando fui acordado com uma chacoalhada do comandante.
Levante-se, soldado, temos que partir agora.
Duvido que eu tenha dormido mais do que duas horas. No entanto, levantei com uma disposição de quem dormiu as 20 horas de um leão. O jovem herói esbanjava saúde e determinação e um enorme sorriso no rosto. Incontinenti, descemos as escadas até o térreo. Os dobermanns já não estavam lá. O comandante tomou um caminho deslumbrante. Uma larga trilha aberta no meio da mata e por onde se podia caminhar sem ser incomodado por ninguém e ainda poder admirar a linda flora que adornava os dois lados da rota pavimentada com terra macia. O comandante certamente lia pensamentos ,pois eu mal esbocei lhe falar e ele antecipou-se.
Soldado, deixe para conversar outra hora. A prioridade agora é levar este herói ao front. Temos algumas horas de uma árdua e longa caminhada.
Seguimos andando a passos acelerados como numa maratona. Eu devia estar cansado, mas estava em ótima forma e suportava muito bem o ritmo. E, estranhamente, não sentia falta das drogas nas quais estava viciado. Nenhum de nós tinha um relógio. Mas tive a nítida impressão de termos percorrido vários quilômetros, em, pelo menos umas duas horas. Logo avistei à nossa frente um lugar muito incomum. Não era uma pequena cidade, nem um povoado, nem um pequeno vilarejo. Parecia-se muito com aquele cenário de uma passagem da mitologia cristã onde uma multidão se aglomerava em torno do rio Jordão para ser batizada por João. Só que ali não havia um rio, nem homens. Só mulheres e crianças. O que causava esquisitice era um longo corredor com grades, dos lados e no teto, muito parecido com aqueles longos corredores em forma de jaulas de prisões, especialmente reservados às pessoas condenadas a pena capital para tomar um banho de sol no pátio, isoladas dos presos comuns para que elas não fossem tocadas. Começamos a atravessar este corredor. Dos dois lados muitas mulheres com crianças no colo vociferavam contra nós, aos gritos. Não era preciso entender o que elas diziam na língua estranha a mim. O ódio contra nós estava estampado em seus olhos. Ao final do corredor, paramos. O comandante disse ao jovem herói que ele estava entregue e lhe desejou boa sorte. O jovem loiro bateu continência todo feliz, nos deu as costas e se pôs a marchar para além daquele lugar onde havia somente mato, mais nada. Eu e o comandante voltamos pelo mesmo corredor, ouvimos os mesmos gritos de lamento e ira, e voltamos pelo mesmo caminho que nos trouxe até aqui. Sabendo que teríamos mais de duas horas de andança, eu não iria esperar chegar até aquele velho edifico sinistro para cobrar explicações do comandante.
Comandante, o que significa tudo isso?
Significa que esta guerra já está perdida e devemos nos retirar.
Perdida? Impossível! Estamos esmagando nossos inimigos Eles fogem de nós como ratos pelos esgotos. A nossa superioridade é flagrante. Eles só sabem nos tocaiar e sair correndo para dentro de suas tocas. Eles não aguentam nossos armamentos. Logo eles se renderão. Como pode o senhor dizer que perdemos esta guerra?
Soldado, torno a lhe dizer que esta guerra está perdida.
Então me explique como eles estão sucumbindo todos os dias aos nossos pesados armamentos, impondo-lhes grandes baixas?
Soldado, sobre este paizinho já foram despejadas oito milhões de toneladas de bombas. 4 vezes mais do que as despejadas na guerra mundial de décadas atrás. 80% caíram em zonas rurais, matando apenas civis, principalmente mulheres e crianças. Apenas 20% atingiram alvos militares. Estas bombas abriram cerca de dez milhões de crateras no solo deste paizinho. Além das  bombas, foram lançadas 400 mil toneladas de agentes químicos sobre vilarejos, indiscriminadamente. Mais um vez matado mais civis dos que solados. Além disso, foram lançados 80 milhões de litros de agentes químicos para devastar a natureza deste paizinho e que vai causar muitas deficiências de nascença nas futuras gerações. Estão sendo deixadas sob o solo deste paizinho quase quatro milhões de minas e cerca de 300 mil bombas que não explodiram, e juntas, estas minas e bombas irão matar cidadãos deste paizinho todos os dias, durante muitas décadas. Foram mortos cerca de 1 milhão de solados inimigos, mas o número de civis mortos, principalmente mulheres e crianças, é 5 vezes maior, 5 milhões de inocentes. Então, soldado, contra quem estamos lutando e quem estamos vencendo nesta guerra?
Comandante, como você sabe numa guerra baixas de civis é sempre inevitável e esta desproporção de baixas entre civis e militares deve-se a fato destes covardes esconderem-se entre civis para nos surpreender com emboscadas. Se quiséssemos, poderíamos simplesmente jogar uma bomba atômica sobre eles e isto não faria diferença nenhuma sobre o número de mortos civis e militares, bastando o fato de que teríamos posto um fim aos homens do mal.
Soldado, você é adepto do genocídio?
Genocídio? Do que você está falando comandante?
Não preciso explicar. Você sabe do que estou falando.
Espere um pouco, comandante. Aquelas duas bombas atômicas que lançamos no passado teve o objetivo de abreviar uma guerra sangrenta e poupar as vidas de milhares de nossos soldados. E surtiu efeito porque o inimigo logo se rendeu.
Soldado, você acha que aquelas duas cidades foram escolhidas aleatoriamente?
Elas foram escolhidas porque eram fontes de produção de armamentos de nossos inimigos e com as bombas nós cortamos o fornecimento de armas que os abasteciam e, no final das contas, elas serviram de avisos a eles sobre o que poderíamos fazer com o resto do país. Por isso a rendição veio em poucos dias.
Soldado, mais de 60 cidades daquele pais foram bombardeadas com armas convencionais e apenas duas  foram deixadas intactas. Você sabe porquê?
Porque eram justamente estas duas cidades que produziam armas e para destruí-las por completo era preciso lançar bombas atômicas sobre elas.
Soldado, elas foram deixadas intactas apenas para medir o poder de destruição de seres humanos e suas habitações por uma bomba atômica. Se estas duas cidades tivessem sido bombardeadas por armas convencionais como as outras 60 não seria possível diferenciar que estrago era causado por armas convencionais e armas nucleares. Todos os civis que morreram nestas duas cidades, principalmente mulheres e crianças, deram aos idealizadores deste holocausto a resposta que eles procuravam.
No momento que ia refutar o comandante, ele me interrompeu e me pediu silêncio. Estávamos nos aproximando do edifico. Foi muito interessante o fato de termos uma breve conversa e não sentir o tempo passar tão rápido. Estranhamente, ele procedeu como na noite anterior. Pediu para eu esperar e foi sozinho até o edifício. Chegando lá ele fez um sinal para que eu viesse e, sem seguida, subiu as escadas. Quando cheguei à porta do edifício não vi os dois dobermanns. Subi tranquilamente e ao chegar ao salão no último andar, o comandante estava sentado naquela mesma janela e na mesma posição da noite passada. Quando aproximei-me dele ele fez algo inesperado e incrível. Saltou da janela para cometer suicídio. Mas ele não caiu. Flutuava no ar e ainda me convidou para saltar. Loucura total. Neste momento, pensei comigo: quer saber de uma coisa, devo estar morto mesmo e se eu saltar não tenho mais nada a perder. Então saltei, e flutuei. O comandante começou a voar e pediu-me para acompanhá-lo. Voávamos sem nenhuma resistência do ar. Uma suave brisa nos envolvia e nos acariciava da cabeça aos pés, como se estivéssemos dentro de uma bolha tão aconchegante como estar debaixo de lençóis acolhedores na noite acordada e calada. Não ouvia-se qualquer barulho. Nem de vento, nem de animais noturnos, nem de vida. Ouvia-se o som do silêncio absoluto sob a luz de um firmamento mais branco que negro e de uma lua maior que a cheia que nos guiavam através de um imenso tapete verde-escuro de vegetação abundante, salpicada por luzes tênues, amareladas, parecendo velas com chamas dançantes e bruxuleantes.
Comandante, estou surpreso. Não vejo nenhum sinal de guerra!
Você não surpreende-se por estar voando, mas admira-se por não ver uma guerra onde deveria haver uma.
O comandante imprimiu um pouco mais de velocidade ao voo e começou a assobiar uma melodia desconhecida. O som de seu sibilo chegava-me aos ouvidos em forma de palavras:
Nossos ascendentes são capazes de entoar hinos que sensibilizam os corações dos anjos. Eles cantam em seus lares e em terras estrangeiras, mas não permitem que seus habitantes os ouçam. Nós temos a vida que pedimos a Deus, mas sacrificamos parte dela para defender os nossos valores e os impomos a gente que os estranham. Dividimos nossa felicidade somente entre nossos pares, mas, mesmo entre nós, os mais fracos ficam com a menor parte dela. Nós oramos a Deus para que nos ajude a derrotar nossos adversários e a estes Deus reza para que não esmoreçam. Nós temos Deus de nosso lado e nossos inimigos do lado do mal. Eles não conseguem encontrar a paz entre seus iguais e nós queremos subtrair-lhes até suas últimas lágrimas de dor. Nesta luta desigual, Deus sente-se o maior de todos os perdedores. Só são capazes de perceber isso aqueles que nada Lhe pediram e estes são os verdadeiros vencedores.
De repente, o comandante começou a descer. E eu o segui sem vacilar. Fizemos um voo rasante e pairamos alguns metros acima de uma daquelas luzes cor de ouro velho. Ali havia uma choupana, abrigo de uma família, que reunia-se ao ar livre. Pai, mãe e filha, sentados, de mãos dadas, formando um círculo em torno daquela luminosidade áurea e quase divina. A mesma sublime mudez que acompanhou nosso voo também permeava aquele ambiente afetuoso, e eu esperava ouvi-los falar, ou, sussurrar, ou ouvir seus corações baterem. No entanto, embora muda, vida palpitante espalhava-se por toda parte e o que se ouvia era a harmonia e a paz que emanavam dos pensamentos daquelas criaturas de olhos puxados refletindo o brilho dos astros, tão naturalmente quanto nosso ato de respirar, a todo instante, a atmosfera que nos circunda, sem dar-nos conta.
Meu companheiro arremeteu e eu acelerei para acompanhá-lo.
Temos que voltar. Vou levá-lo para casa.
Minha casa. Por quê?
Meu companheiro sinalizou que deveríamos nos manter calados porque tínhamos uma longa viagem pela frente. Depois de um tempo imponderável, avistei uma enorme cidade, iluminada, que parecia-me familiar Meu companheiro puxou-me pelo braço e aterrissamos no meio dos prédios.
Você conhece este lugar?
Claro! Este é o marco zero de minha cidade!
Você sabe como voltar para casa daqui?
Claro. Logo ali tem um ponto de uma linha de ônibus que vai direto para meu bairro.
Meu companheiro disse adeus e preparou-se para alçar voo.
Mas, o que significa toda esta experiência que tivemos? Qual é a lógica de tudo isso? Quem é você?
Significados, identidades e coerências não têm importância, mas a experiência sim. Você a teve e é só isso o que tem valor.
Ele começou a afastar-se de mim e, lentamente, vi minha mão apartar-se da dele. Enquanto ela ainda pendurava-se em um de seus dedos e conformado com o fato de que ele jamais iria desvendar-me o mistério destas duas noites, resignado, despedi-me me dele.
Sabe, comandante, eu não estou preocupado se estou vivo ou morto. Sinto, no meu íntimo, que continuarei dormindo, sonhando e acordando todos os dias. Só tenho medo de uma coisa: de um dia acordar no meio de um inferno como o da noite passada e não ter ao meu lado alguém como você para me proteger.
Pela primeira vez o comandante falou-me olhando nos meus  olhos.
Aconchegue-se em meus braços, soldadinho, como um passarinho em seu ninho quentinho. Feche estes olhos maravilhados, solte de meu dedo esta mãozinha e repouse esta cabecinha cansada. Esta noite você vai dormir em paz. Nenhum mal perturbará seu sono. Não se  assuste com os sons que você ouvir. Alguns são apenas folhas de árvores levadas pela brisa de encontro à porta de sua casa. Outros, os murmúrios do mar, são apenas ondas solitárias lavando a praia. Você continuará sonhando como um rio eterno em direção à imensidão dos oceanos. Seu rosto resplandece sob o olhar do seu anjo que o assiste do alto. Seu amor manifesta-se em mim, desperta a esperança e faz jorrar alegria. Seu anjo desce e nos envolve com sua paz celestial.. Agora, soldadinho, é você quem me levará até o lugar do qual Eu gritei para ele esperar e ele se deteve a um metro do chão. Mais uma vez, ele antecipou-se às minhas perguntas.
Você não precisa de respostas para todas estas perguntas. Tudo o que você precisava ver e saber eu te mostrei esta noite.
É só isso que você tem a me dizer?
Sim. Não se preocupe. Você nunca mais me verá. Não sou seu anjo da guarda e nem aquele coelho enforcado na maçaneta da sua porta que lhe causava terror noturno na infância.
Você não pode, ao menos, dizer seu nome?
Nomes não são importantes.

EPÍLOGO

Estou no ônibus a caminho de casa, A saudade é imensa, O medo também, Não sei se a Gwen ainda me espera, Ou se me esqueceu para sempre e já está com outro, Se eu tiver a sorte de ainda encontrá-la, Será impossível fazê-la acreditar no que me aconteceu, Estou voltando como queria, Vivo, Sem mutilações, Mas não da maneira que esperava, Tudo é real, Mas não deveria ser, Deve passar da meia-noite, As ruas são as mesmas de sempre, O caminho é conhecido, Tudo é familiar, As poucas pessoas que viajam são verdadeiras, Uma delas tem um pequeno rádio junto ao ouvido e conversa com ele, Esta estranheza me fez lembrar quando entrei no ônibus, Na hora de pagar me dei conta que não tinha dinheiro e nem documento, Só meu uniforme, Quando tentei me explicar com o cobrador, Ele acenou com a cabeça pedindo-me para passar, Mas insisti em me justificar, E ele apenas respondeu que soldado que luta pela pátria não paga, Então perguntei-lhe como ele sabia que eu voltava de uma guerra, Ele limitou-se a dizer que eu sou um homem de sorte, Um espírito de muita luz, Retruquei dizendo que isso não era uma resposta à minha pergunta e que, Além do mais, Não lutei pelo meu país, Mas por um pais estrangeiro, E isto está errado, O cobrador respondeu que errado é matar civis, Mulheres e crianças, Mas eu matei soldados, Ele sorriu e acrescentou que o mundo está se matando todos os dias, Falei-lhe sobre minha preocupação, De minha mulher não saber onde estive, De achar que eu a abandonei, Porque já se passaram  muitos anos, O cobrador acrescentou que o que fiz não é abandono, Mas uma transcendência, Transcendência? O que ele quer dizer com isso? Perguntei-lhe se eu estava sonhando, Ele estendeu-me a mão e eu a apertei, Senti-a, Em seguida ele tirou sua carteira do bolso, E me mostrou uma foto de sua mulher e filhos, Eles estão dormindo agora, E minha esposa me aguarda sob lençóis quentes, E a sua também, Como você pode ter tanta certeza disso? Você não me conhece, Nem minha esposa, Não é preciso conhecer, Você não conhece a pessoa que te trouxe de volta, Mas acreditou nela, E confiou seu retorno a ela, Mas ela é tão estranha como você é para mim, É estranho este ônibus estar te levando para casa? Não! Qual é seu nome? Nomes não são importantes, Mas todo mundo fala seu nome quando se apresenta, O meu é AustMathr, E o seu? Homônimo, Você também se chama AustMathr? É coincidência demais! Meu nome não é comum, Não! Saiba que laço quer dizer laçada, E lasso quer dizer cansado, Entendi, E como se escreve seu nome? Como você quiser, Deus, Por exemplo, Mas Deus não é homônimo de AustMathr! Deus é homônimo do homem, Você está me dizendo que é Deus? Não, Não estou, Então por que você disse que seu nome é Deus? Eu não disse que meu nome é Deus, Então por que mencionou Deus como exemplo? Porque o homem inventou Deus, Todos nós somos deuses, Se eu sou Deus e AustMathr, Um soldado, Você é Deus e quem mais? Eu sou Deus e o cobrador deste ônibus, Acho que agora você está brincando comigo, Não quer dizer seu nome por quê? Quando você chegar em casa e contar à sua esposa tudo que lhe aconteceu você acha que ela vai pensar que você está brincando? Como posso saber? Nem sei se vou encontrá-la? Quer saber quando algo é brincadeira e quando não é? Sim, Como você chegou na cidade? Voando! Você está brincando comigo? Não, Não estou, Juro por Deus que cheguei voando! É por isso que acho que estou sonhando, A gente só voa em sonhos! Se você acha que está sonhando, Então continue sonhando, Sonhar é bom! Mas enquanto estive na guerra tudo era real, Quase morri durante um ataque surpresa do inimigo, Um soldado sinistro, Aparentemente de patente superior, Me salvou, E a partir daí tudo ficou esquisito, Ele me disse que havíamos perdido a guerra e que iria me trazer para casa, E o problema é que ele me trouxe de volta voando, Fora isso, Tudo parecia real, Lá no campo de batalha e agora aqui na minha cidade, Mas não deveria, O que é mais importante para você? Saber meu nome ou descobrir se você está sonhando ou não? É claro que preciso saber se continuo sonhando, Então prove esta barra de chocolate, Ela é real, E saborosa, Não? Sim, Você tem razão, Se você quiser mais uma prova, Te levo para minha casa, Acordo toda a minha família, E depois podemos ir à sua casa para apresentar minha família à sua mulher e marcamos um dia para jantarmos juntos, Meu turno acaba em uma hora, Quer ir? Não, Obrigado, Preciso ir direto para minha casa, Se eu encontrar minha mulher e tudo mais no devido lugar, Então acreditarei que não estou mais sonhando, Olha, Este é meu ponto, E minha casa fica a duas quadras daqui, Vou descer agora, Foi bom conversar com você, Mas não pense que me engano facilmente, Você não é um simples cobrador e não está aqui por acaso, Tenho outras prioridades agora, Mas um dia vou descobrir quem você é, Conheço esta linha de ônibus e sei onde fica a garagem de onde saem todos os veículos, Ele sorriu e acrescentou que todos nós estamos aqui por acaso, Me chamou de soldadinho, Como aquele desconhecido comandante que me tirou daquele inferno pelos ares, E desejou-me boa sorte, E à minha mulher também, Cheguei em casa, Graças a Deus tudo é real! É minha casa mesmo! Não estou sonhando! Mas a porta não está trancada, Isto não é normal, Minha mulher jamais deixaria a porta destrancada numa cidade tão perigosa como esta, Entrei, Subi até o quarto, Meu coração disparou, Lá estava ela dormindo serenamente, Deitei-me ao lado dela,  Cobri-me com o lençol, E chamei-a silenciosamente, Querida! Aí que susto! Meu Deus, Ainda bem que você me acordou, Você me tirou de um pesadelo horrível que parecia uma eternidade! Eu estava emocionado, Quase chorando, Tudo estava normal, Nada havia mudado, Que pesadelo, Querida? Meu amor, Você não vai acreditar, Sonhei que você decidiu entrar numa guerra, Não pelo nosso país, Mas por um país estrangeiro contra outro estrangeiro, Não entendi porque você fez isso, Você disse que voltaria logo e disse adeus, Mas passaram-se anos, Não tinha nenhuma notícia sua, Você não me escrevia, E nem sabia em que guerra você estava, Procurei amigos e perguntei-lhes se eles sabiam onde poderia estar ocorrendo uma guerra, E eles me disseram que havia um guerra em outro continente bem longe do nosso, E que já durava muitos anos, Me deram os nomes dos países envolvidos, Fui na embaixada dos dois, Dei seu nome a eles, Mas nenhum deles tinha qualquer registro seu como soldado servindo seus países, E acharam estranho eu procurar por você junto a eles já que você não é da mesma nacionalidade, A partir daí todos nossos amigos e parentes se mobilizaram para saber de seu paradeiro, E eu orava a Deus todas as noites, Por que ele fez isso? O que aconteceu com ele? Por favor, Meu Deus, Traga meu marido de volta para casa! Neste momento, Surgiu um homem alto e forte, De olhos penetrantes, Não se preocupe senhora, Seu marido está são e salvo, Eu o tirei da guerra, Trouxe-o para cá, E coloquei-o num ônibus, Ele está a caminho de casa, Logo ele estará aqui, Quem é o senhor, Deus? Sou a transcendência, Transcendência? O que o senhor quer dizer com isso? Sou um dos atributos do homem, Que lhe ressaltam a superioridade em relação a todas as criaturas irracionais do planeta, Mas só Deus tem esses atributos! Todos nós somos deuses, senhora, Me desculpe, Mas o senhor está blasfemando, A senhora pediu ajuda a Deus e ela já está a caminho, Agora preciso ir, Seu marido logo chegará e vai te tirar deste pesadelo, Ele é um espírito de muita luz, Um soldadinho de muita sorte, Qual é seu nome, senhor? Nomes não são importantes, senhora! Então, Meu amor, Neste exato momento você me chamou e me acordou, Não é incrível? Eu estava sem palavras, E sabia que iria passar o resto de minha vida refletindo sobre tudo o que me aconteceu e porquê, Estava um pouco aliviado também, Porque tudo continuava normal e eu não iria precisar explicar tudo à minha esposa, Mas de repente ela exclamou, Meu amor, Por que você tirou o pijama e vestiu este uniforme de soldado?


FLUIDEZ

 

Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)
 
 
 

Um envelope leve como fio de seda e folha de magnólia, borboleteia no ar, carregado de mensageiros da alma, cambalhotando ao sabor do vento inquieto que o ergue em beleza, e  descai-o numa rasante, rodopia dentro de uma caixa de correio e arremete, deslizando, estabanado, resvalando nas teias de pensamentos que encontra pelo caminho à deriva no céu de rosas, refletindo milhões de sóis, e um deles desce à superfície, abaixo d’água, como miragem da lua iluminando veredas, feito lanterna de fulgor azul tremulante, lá do alto mar até a praia, e aqui da nascente do riacho até o rio caudaloso, põe minha mente a flutuar correnteza abaixo, na companhia de um pássaro que não sabe nadar, desarmando todos os aforismos, rendendo-me ao vazio onde nada parece ser real, onde nada faz sentido, onde os movimentos e as emoções não têm a mesma forma, onde tudo é seguro e fluindo da paz, que do amanhã nada se sabe, que da morte não se morre, que minhas preciosas posses já não me consomem mais, ouço o pássaro cantar que sabe o que é ser impalpável, sentir-se como se desde sempre estivesse desencarnado, e ele me alça num voo que meu inconsciente jamais sonhou, me transcende, me transporta para fora do meu ser, de meu isolamento e da minha alienação, para um despertar de meu espírito, uma conexão mágica e em êxtase, transformando-me num habitué das odisseias astrais, põe minha busca no lugar certo, fico um pouco perplexo, mas arrebatado e verdadeiro, com minha vida pregressa despoluída e em contato com o centro regulador de meu universo interior, fervilhando estrelas mil a engastar-me dentro de incontáveis e longínquas galáxias, que de perto resplandecem meigas luzes de candeias, dando-me uma sensação de unidade indivisível, uma singular entidade cósmica, tornando-me mais autêntico e autoconfiante, ligando-me a algo que está muito além do que tenho sido, e é neste além que vai parar um envelope de fluidez



sexta-feira, 24 de maio de 2024

SUBINDO AO CÉU PELO SÓTÃO



Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 
DEDICADO AO MEU PRIMO JOSÉ URBANO FELTRAN - 1951 - 2019

As nuvens noctilucentes descem, Inoportunas aos mais lindos veranicos de maio, Para sorver os docinhos, E os derramam sobre a água-furtada, Unindo-se ao silêncio e à doçura da noite, Rezando suas ave-marias, E redescobrindo sua alma humana, De sua infinita mansarda, E seus escuros e sinuosos meandros, Como os recortes da costa de um mar faiscante, Abrangido por um vasto horizonte, Lá fora, O jardim tapetado com uma camada de pétalas, Uma última folha de paineira que deu lugar a uma flor, É levada pela brisa de encontro à sua porta, Murmura como onda solitária lavando a praia, Ainda não tem seu sono imorredouro perturbado, Deitada sob o recanto esconso, O desvão do telhado, Infindo para andorinhas e corujas, Altivo e inconquistável pelas enchentes, Sonha como um rio eterno em direção à imensidão dos oceanos, Resplandece o rosto sob o olhar de um anjo que te assiste do alto, Sente seu amor nele manifestado, Desperta sua esperança, Faz jorrar sua alegria, Vem te ensinar a voar, E subir ao céu.   



LET IT BE AND LET IT BLEED

Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 


Paul, What?, You asking me for wise words and unlocked boxes stuffed with perfumed pastilles, Like full of air fussies!, What about that mouth thing?, What is this setup of a Catholic wax worker hanging wicks to make candles to God and the Devil? If you face hard times and need to go upstairs for a ride, Count me out, No fellatio on me, Please, And it is no use supplicating to Virgin Mary, Her bowels are an exclusive asset of the holy spirit, As for Jo Jo, The male one you said he thought he was a woman, Well, He is really a she, Always keeping all the doors open, She only closes them for her literary verve if you pull her leg, But you can rest your weary body on her lap, The basement where she lives has plenty of space, In addition to medicinal herbs and compassion for the unfortunate, Now, If she is right on those 365 days of a lap around the sun, Full of luxury gushing blue blood, Then try Bernie the Turkey, Wronged member of Tupiniquim snobbery, And not so badly lacking a scrotum torn apart by Mademoiselle Decô, Shooting for a second-hand would-be Barbarella, The one who didn't read you and didn't like you, Who throws away your book because she didn't like the cover, Paul, If you need a shoulder to cry on, Shed your tears on Aristocles' scapula, He can have a chat with your whimpers in his corpus platonicum, Now, If you need someone to dream on, Sleep with Graciliano, And show him your knack to unite in imagination and outside of it, If you need someone to feed on, Play a song for your soul, But don't irritate it with John Gilbert’s New Shit, If you need to get bloody damn high, Ask Mr. Tambourine Man to play a song for you, Now if you need someone to cream on, Take Bozo's invitation, Feel free to go to his share of the housing assistance paid with your money to exchange fluids with a woman without or with a penis, I'm in doubt as it is said the fascist is a limp-dick, If you need someone to bleed on, Let it be, Adelio's knife was just another sham.


DEATHWATCH



Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

The haughty king had all that, A bag of chips, and his nabob life, Without rhyme or reason, The only two subjects, Taking the places of morticians, Mourners, Pallbearers, Gravediggers, Mass attendants of the seventh days, Pilgrims of the November 2nd deads, Now foot the bills, With nothing left, Not even a quarter to light a single candle, Not even a pale oblation of flickering light to God, The devil´s got a lot of them, In excess, All red and black, He gives them away, It pleases him a death that will not kidnap, At his zeal, His agreement with the deceased, Thus he deposits his stakes in the deathwatch of the sold soul, Not to give the tiniest chance to his arch enemy, He saturates the guard and the sentry with many red-headed vultures, Gifts that a potentate sends to another one, Sovereign keepsakes, The song chosen by the defunct echoes in distant ears, As if it is coming from an ancient greek theater accustics, It booms with stridence that annoys the two women, Thus it is hushed, Leaving room to the sound of silence, Stanching all nature voices, Like a landed UFO, In its loneliness we do not know, And this evening will be shortened, Antecipating the burial, For the account of faltering sleepness, and imprudent absences, Except for an intruder, Who remains invisible, And all he gets from the boomer is an indifferent look, Since in life, He did not notice the multiple bankruptcy of a foolish, And in the end, His replies to prayers were never heard, So the long-suffering whiners have nothing else to do but improvise a gregorian chant as their farewell, That moves the deuce, And as a sign of cynic respect, He lies his lips on the moribund´s forehead, And a stink of carrion spreads across the surroundings, Like the odor of a corpse rotting six feet under, Just another departed one who was never part of any statistics, How many ordinary citizens of the ancient roman empire died without a name? All of them! How many slaves to the glorious Athens went down to the annals of history? None of them! How many servers and usupers of the present days will continue existing for posterity?

segunda-feira, 20 de maio de 2024

A SALA DE VELUDO

Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 


A menina inocente, Sem nenhum pecado capital, Acordou de repente, No meio da noite numa cidade universal, Plena de felicidade, Mas privada da visão beatífica do grande Criador, Por isso procurou, Mas não achou, O Cristo Redentor, A menina sem maldade, Perambulou, E se surpreendeu, Quando se deparou, Com o Coliseu, Seu espanto, Seu susto, Sua aflição, Se confundiram e se misturaram num sentimento amplo e justo, Com a euforia da multidão, Ovacionando os gladiadores, A menina sem comunhão, Sentiu  cheiro de flores, As buscou, Rapidamente caminhou, E pensou, Estar chegando perto da Amazônia, Arregalou os olhos ao se deparar, Com os jardins suspensos da Babilônia, Com perfume âmbar, Seus mármores, Seus terraços, Seus horizontes, Se distinguiam e se harmonizavam com arranjos de árvores e sargaços, Trazidos do alto-mar para enfeitar as fontes, Imprimindo à paisagem uma expressão digna de um poeta, Uma beleza que  sai das mãos do rude escultor e seu cinzel, A menina inquieta, Não perdeu os olhos para a majestosa torre de Babel, Ali tão próxima e rica em idiomas, Subiu ao cume, E o que ela viu pareciam dioramas, A quilômetros de distância divisou um lume, Que em todas as direções se movia, Que custou a adivinhar, Até que um anjo perdido no limbo lhe soprou que era o farol de Alexandria, Ela precisava lá chegar, Quem lhe dera houvesse um caminho ligando os dois pontos, Mas não existia uma muralha como a da China, Então teve que se deslocar pelo ar, Como nos livros de contos de fadas, Enquanto voava, Maravilhou-se ao olhar para baixo, E reviver a antiga Hiroshima, A menina ainda  não batizada, Bem versada, Seguia costa-abaixo, Arvoava, E ansiava para conhecer a grande biblioteca das conquistas Macedônias, Da plêiade dos primeiros escritos que folheou com mãos emocionadas, Entre eles um principalmente se sobressaía, Os esboços dos inventos de Arquimedes, Que teriam mudado a história da humanidade, Sem cerimônias, Sem hesitação, E pernas apressadas, Mais uma vez a menina partia, Com humildade, Vou para onde me pedes, Sem o reconhecimento de Deus, Para o berço da civilização, Onde contemplo em Olímpia a estátua de Zeus, Em Éfeso o templo de Ártemis, Em Rodes as colossais pernas através das quais passava qualquer embarcação, A menina que nasceu antes do mito de Jesus, Continua sua jornada na caligem de Éris, Chega à terra Santa, Vislumbra o Templo de  Salomão, Recebe um pouco de luz, E se acalanta, Ruma para o delta do Nilo, E lá não encontra as pirâmides de Gizé, Quase não se conforma com aquilo, E nas inundações do grande rio, Encontra sapé, E sêmeas, No lugar do vale dos reis, As torres gêmeas, Parecia um desvario, Mas ela percebe tudo, Sabe que está num espaço entre dois mundos que fundem suas propriedades e suas leis, A menina ainda com o pecado original, Sem remissão, Mantinha uma atitude normal, Sem insurreição, Plena de justiça, Ainda que lhe fosse negado o livre arbítrio, Por isso tentou, E encontrou, Um conquistador assírio, A menina sem imagem postiça, Vagou, E não fez estardalhaço, Quando se defrontou, Com o mausoléu de Halicarnasso, Sua curiosidade, Seu desprendimento, Seu destemor, Se confundiram e se misturaram num sentimento de totalidade e agradecimento, Com a possibilidade do amor, Voltando a dormir com o mesmo sonho que a acordou, Com poderes redobrados que não sabe onde pôr, E o que mais ganhou, Foi descobrir que tudo que é destruído, Pode ser visitado, Tudo que ainda existe, Vai ser destruído, Nada é de ninguém, Nada é seu, Nem quase nada, Nem quase tudo, O que morre é preservado num museu, Numa sala de veludo.





terça-feira, 14 de maio de 2024

UM DIA VISTO À NOITE


 Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98


Ela foi levada pelo amor, Pela janela, A porta estava trancada, E a chave torta, Foi tudo embora, Mundo afora, Casa e esperança, De onde sai tanta gente com tanta lembrança? Que aqui tem a vida estancada, Indiferente e ensimesmada, Perdida na realidade, Em busca de verdade que não existe, Só ela insiste, Nada houve em Roswell, O desastrado caído do céu, Só eu sei que ele pode ser turista e tão bom quanto um samaritano, Quanto eu um sonhador Joyceano, Shakespeariano, E já agora perco o fio da meada, Sobre o que falava, Aquela paixão arrastada pela esteira rolante da matéria da escuridão, Até o final da luz, Onde ficamos todos nús, Acabados, Tristes, E a felicidade andando de lado, O meu medo avançado, Estica meu dedo para ser tocado, Como se nossa existência fosse mágica, A morte esquecida em sua inexorabilidade, Trágica na sua previsibilidade, E como diz aquele homem, Toda essa gente solitária, De onde elas vêm? De onde elas são? E como disse aquele outro homem, Sabemos como é estar morto, E se sente como se nunca tivesse nascido, Isto é muito parecido com tudo que penso à noite, Com o açoite da depressão, O americano exilado na Rússia, Adaptado à solidão, O mentalista que encontra nomes que o inconsciente desconhece, Isso me adormece, Até quando o dia me amanhece, E sigo doente, Como dor de dente em todos os ossos do corpo, Nascido torto, E assim partirei, Esperando encontrar a fenestra que me dei largada aberta, E o amor que me tirei trazido de volta, Como um pedaço de coisa preso ao rodopio do vento, Dançando arisco e lento, Neste mundo fantástico, De tanta beleza, Fico estático, Com tanta riqueza, Não me aguento, Não levo jeito, Só tento.   

   

terça-feira, 7 de maio de 2024

ESSAS COISAS ACONTECEM



Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 


Eu sou apátrida. Nasci na Faixa de Gaza depois que ela foi tomada dos palestinos pelos israelenses em 1967. Minha mãe é judia, da família Ben Stein, e era uma agiota nas ruas de Tel Aviv. Meu pai é palestino, da família Bin Salim, e ganhava a vida fabricando bombas caseiras. Quando eu era adolescente, imigramos para o Brasil e fixamos residência no bairro do Bom Retiro em São Paulo. Lá minha mãe montou uma agência de viagem e prosperou como doleira. Meu pai montou um esquema de contrabando com fiscais e também enriqueceu. Meus pais sempre tiveram muitas divergências religiosas, por isso não entendo por que eles se casaram. A opulência fácil neste paraíso de ladrões subiu-lhes à cabeça, e eles acabaram se separando, de seus acordos conjugais e de suas tradições seculares. Minha mãe abandonou o judaísmo e entrou para a igreja universal do reino de deus. Ela se tornou a tesoureira do bispo, conhecido pelo jargão 'ou dá ou desce', e hoje ela tem casas em Miami, Paris e Roma, mas continua morando em São Paulo, no bairro do Morumbi. Meu pai, muito machista, descontrolou-se um pouco com o divórcio pedido pela minha mãe. Entregou-se à bebida, perdeu tudo o que tinha, abandonou o islamismo e se tornou pai de santo. Mas ele teve muita sorte. Fez um trabalho milagroso para um cliente endinheirado no terreiro de umbanda onde trabalhava e, por gratidão, este cliente o apresentou ao autor da icônica frase ‘se o estrupo é inevitável, relaxe e goze’, de quem era amigo. Meu pai ganhou a confiança do ‘rouba, mas faz’, e tornou-se o administrador de suas contas bancárias internacionais. Hoje meu pai vive tão bem quanto minha mãe. Tem casas nas Ilhas Jersey, Genebra e Ilhas Cayman. Desde que os meus pais se separaram eu sempre morei com minha mãe. Eu puxei mais o lado judeu do que o muçulmano. Como eu entendo as línguas e as culturas destas duas raças semitas fui escolhida e treinada para ser espiã no Oriente Médio, mas minha escolha se deveu mais à minha mediunidade, minha capacidade de fazer projeções astrais. Desde então sou obrigada a sair do meu corpo quase todas as noites em missões pelo mundo afora. Ainda sou uma jovem mulher, mas pareço ter mais de 50. Estou envelhecida e traumatizada. Minha dor física e moral começou no dia em que eu descobri que era paranormal quando era apenas uma adolescente e ainda morava na Faixa de Gaza. Meu pai trabalhava até de madrugada fazendo bombas caseiras para os suicidas do Hamas, e uma noite houve um acidente em casa:  uma bomba explodiu num dos cômodos e tudo foi para os ares. Eu fui arremessada às nuvens, mas daí comecei a perceber que eu não caía, mas flutuava e voava. Pensei que eu estivesse sonhando. Lá de cima vi minha casa no chão, uma enorme fogueira, entulho sobre entulho. Comecei a planar e a descer como um aeromodelo e quando aterrissei na minha casa ainda em chamas fiquei apavorada ao ver meus pais estropiados e quase sem vida. O pior ainda estava por vir. Num canto em meio aos escombros, onde fora meu quarto, vi meu próprio corpo todo ensanguentado. Surtei. Estava chocada, mas não sentia nenhuma dor. Vi os carros de resgates levarem meus pais e meu corpo para o hospital. Enquanto estávamos os três numa UTI em estado grave, fiquei quase dois meses voando high and low, dia e noite. Quando todos nós melhoramos e saímos da UTI para quartos normais, sem saber como, consegui entrar no corpo e aí, sim, senti as dores e as sequelas daquela grande explosão. Quando todos nós recebemos alta, meu pai abandonou seu trabalho de revolucionário e resolveu trazer minha família para o Brasil. Eu contei esta história de sair do corpo somente para minha mãe e ela, como toda boa judia oportunista, teve uma ideia. Foi a Jerusalém e lá falou com um rabino de uma sinagoga poderosa ligada à polícia secreta israelense e lhe explicou tudo a meu respeito. Foi esse rabino que anos mais tarde me apresentou ao Mossad. O resto é uma longa história. Lembro-me do meu primeiro ano aqui no Brasil, em 1994, quando o Brasil foi campeão mundial de futebol. Os foguetórios nas ruas à noite arrancavam-me do sono profundo e me projetavam para fora de meu corpo. Era meu trauma da adolescência que curei com muita terapia e, finalmente, durante os treinamentos militares em Israel. Foi lá que dominei a técnica de sair e voltar para o corpo com disciplina. Raramente as polícias secretas, e muito menos a israelense, aceitam mulheres para espionagem astral. Eu só fui contratada porque além da minha astralidade tenho um dom raro que se assemelha com algo que apenas os alienígenas parecem ter chamado TRANSEUNCIA, algo parecido com o que nós chamamos de ubiquidade. Mas trauseuncia é um termo muito limitado para definir as muitas habilidades de quem a tem, como, por exemplo, fazer o tempo parar. Certamente, vocês devem estar se perguntando por que minha mãe me alistou num serviço militar tão perigoso como esse, ao invés de manter-me trabalhando com ela uma vez que ela já era milionária. Mas os judeus sempre ambicionam mais e minha mãe sabia que a espionagem astral paga uma grana preta, especialmente para alguém como eu, com um grau significativo de transeuncia. Minha mãe tinha em mente até mesmo criar uma agência de espionagem entre Brasil, Israel e EUA e duplicar sua riqueza. Minhas amigas me perguntam até hoje por que eu não apenas participei de algumas missões até juntar um bom dinheiro, cair fora e montar meu próprio negócio. Até uma judia espertalhona como minha mãe enganou-se. Espionagem astral é pior que a máfia. Quando você entra você nunca mais sai e se sair morre. Além disso, torna-se um vício. É como entrar para a política tupiniquim: você nunca mais consegue parar de roubar. O espaço astral é muito mais populoso que o mundo físico. Muito mais arriscado e ardiloso. Ao contrário do mundo físico onde há leis criadas por uma minoria de corruptos para enganar a maioria dos otários, no mundo astral não há ingênuos, exceção feita aos mortos,  e nem leis. É um lugar onde vale tudo. Um lugar de todos e, ao mesmo tempo, de ninguém. No espaço astral encontra-se com todo tipo de pessoas: espiãs como eu, gente comum que sai do corpo só para passear e até gente morta que não sabe que morreu. No começo de minha carreira de espiã astral, ainda com pouca experiência, cruzei com um sujeito aqui mesmo em São Paulo que queria saber onde ficava o Rio Anhangabaú. Expliquei a ele que o rio já havia sido soterrado e sobre ele passava uma avenida, mas ele achou que eu estava sacaneando. O sujeito parecia ter morrido havia mais de 150 anos e estava procurando o rio para tomar banho. Para me livrar dele tive que levá-lo até o rio Tietê e dizer a ele que era o rio Anhangabaú que havia sido alargado para permitir navegação fluvial. Por sorte, o espírito acreditou em mim e largou do meu pé. Saiu voando rápido em direção à marginal e de longe eu o vi saltando de cabeça lá de cima da ponte das bandeiras naquele esgoto a céu aberto. Alguns destes mortos estão realmente perdidinhos da silva e quando encontram alguém como eu que lhes dá atenção eles grudam e não largam. Certa vez parei em pleno voo para dar uma informação a um morto, mas ele não se deu por satisfeito, me seguiu até em casa e ficou zoando lá quase uma semana. Ainda bem que minha mãe conhece uns rabinos da cabala judaica que preparam um incenso que tem um fedor tão forte que espanta até espírito de barata da casa por mais de um ano. Quando comecei a trabalhar para o Mossad israelense automaticamente comecei a  prestar serviços para a CIA americana, porque este país, os EUA, trabalha arduamente para dominar o resto do mundo. O problema no espaço astral é que todo mundo acaba se conhecendo. Não demorou muito para minha fama como espiã astral se espalhar e logo fui procurada pelo Hezbollah libanês para fazer um trabalho contra Israel. Aceitei porque todo mundo é hipócrita, sem ideologia, e só age por interesse, dinheiro e poder. Afinal, tenho também meu lado paterno muçulmano e aprendi muito com a malandragem brasileira.  Não há nada de imoral em ser um agente duplo. Hoje sou muito mais que isso. De agente duplo passei a agente triplo, quádruplo, quíntuplo, sêxtuplo, sétuplo, óctuplo, nônuplo, décuplo e, para encurtar a história, já trabalhei para tantas polícias secretas e grupos terroristas que posso dizer que hoje sou uma agente cêntupla. Podem me chamar de mercenária. Dou preferência a quem paga mais. Não vejo nenhuma desonra nisso, porque o mundo é mercenário. No mundo físico, os cinco países que formam o conselho de segurança da ONU, EUA, Rússia, China, França e Inglaterra, são os campeões de vendas de armas por baixo do pano para fomentar guerras em países paupérrimos e que morrem de fome, como os africanos. Estes cinco países usam agentes autônomos para levarem suas armas aos países em guerra. Seus presidentes não querem sujar suas mãos em público e precisam de agentes secretos para fazer a sujeira. Se não há guerras, eles criam-nas porque suas indústrias bélicas não podem ficar ociosas e precisam manter os empregos de seus funcionários e o bem-estar de seu povo. Todos são matadores de aluguel. Quando o Aiatolá Khomeini do Irã expulsou os americanos, inventou-se uma guerra de fronteiras entre Irã e Iraque. Os Americanos colocaram Saddam no poder e lhe deram armas e poder para lutar contra os iranianos. Todos vendiam armas para Saddam: França, Inglaterra, Rússia e China. O Brasil vendeu armas (tanques e metralhadoras) para os dois lados, Irã e Iraque. Quando a ex União Soviética invadiu o Afeganistão, os americanos deram armas e apoio logístico a Al-Qaeda e ao Talibã para estes rebeldes lutarem contra os Russos. Os americanos já venderam armas para a Coréia do Norte e vários outros países que hoje são considerados seus inimigos. Tudo é uma questão de interesse momentâneo. Um amigo hoje pode tornar-se um inimigo amanhã. Tudo é uma questão de conveniência a serviço do poder. A China, por exemplo, se diz comunista, mas ela não tem ideologia nenhuma. Na Palestina, ela vende armas para os dois lados, israelenses e palestinos. A China pretende e vai dominar o mundo no futuro. No mundo astral não existe conselho de segurança. Lá tudo funciona na base do CADA UM PARA SI E DEUS PARA TODOS. Por falar em deus, agora vocês devem entender por que os alienígenas estão por aqui assistindo a toda esta balbúrdia no planeta terra. Por enquanto eles parecem estar neutros e se limitam a nos observar apenas a partir do plano astral. Quando eles entram no plano físico é somente para cruzar com humanos. Mas isso é história para outro dia. No plano astral trava-se uma guerra mais sangrenta que no plano físico. A maior parte da população astral é composta de espiões. Eu sofro demais com as contraespionagens. No plano astral a gente não morre. Para se manter vivo é preciso esconder o corpo no plano físico a sete chaves. Todos os países do mundo inteiro usam médiuns para descobrir onde se encontram escondidos os corpos físicos de pessoas em missão de espionagem com seus corpos astrais. Eles descobrem e matam estes espiões. Eu tenho um escudo contra estes médiuns que é a minha transeuncia. Mas se eles não conseguem te encontrar no plano físico, a contraespionagem te encontra no astral e se você é capturado o sofrimento pelo qual você passa é muito pior que a morte. É preferível morrer fisicamente do que ser detido durante uma missão no astral. A tortura é simplesmente indescritível. É muito parecida como, por exemplo, ser enterrada viva e permanecer dentro de um caixão debaixo da terra por décadas, viva, até seu corpo físico parar de funcionar. O que se pode fazer de ruim com o corpo astral é muito pior do que qualquer tipo de tortura imposta ao corpo físico. Os alienígenas sabem muito sobre isso. Numa ocasião, eu estava numa missão para a CIA americana e fui surpreendida e presa por um grupo da FLP (Frente de Libertação da Palestina). Eles iriam me torturar até eu revelar o segredo de minha missão. O que me salvou foi o fato de eu falar árabe e contar a eles o passado de meu pai como colaborador do Hamas. Às vezes nem mesmo a raça ou até a mesma a nacionalidade ajuda um espião astral a se livrar de uma tortura das bravas. Soube de um caso do grupo terrorista israelense Kahne Chai, também conhecido como Kachi, que sequestrou espiões judeus ortodoxos e não livrou a deles só por serem compatriotas. Ocorreu também um caso do grupo inglês MI5 interferir na espionagem da Scotland Yard. Há também cooperação entre grupos de espionagem de países diferentes por mera empatia, como o ETA espanhol e o IRA irlandês. E há também batalhas homéricas entre grupos de países que são inimigos mortais, como o Mujahideen indiano e o Jaish-e-Mohammed paquistanês. No plano astral estão acontecendo coisas que ninguém no mundo físico imagina. Há pessoas conspirando para reativar antigos grupos. A Gestapo da Alemanha Nazista, a KGB da União Soviética, o DOI-CODI da ditadura militar brasileira, o OVRA da Itália fascista, e até mesmo o Oprichniks do tempo do Ivan, o Terrível, da Rússia. Para encerrar, vou lhes contar o que de mais estarrecedor já me aconteceu durante uma  missão. Fui capturada por um disco voador. Não me perguntem como é um disco voador por dentro e nem como são os alienígenas. Se eu lhes contar, vocês irão achar que sou muito mais doida do que já estou. Muito bem, para satisfazer a curiosidade de vocês vou contar apenas uma coisinha simples, mas aterradora. Os alienígenas e suas naves que chamamos de disco voador são uma coisa só, mas não concreta. Parece-se mais com uma projeção, como o corpo astral do ser humano. Um amigo meu que foi capturado por eles lhes perguntou de onde eles são e, e eles responderam que não sabem. por isso, há quem diga que eles estão presos na dimensão astral da terra, e não sabem como sair.  Eles abduzem humanos no plano astral somente para descobrir uma maneira de sair de nossa gravidade e recuperar a noção de onde eles vieram. Eu não acredito nesta tese. Creio que eles me apanharam para investigar minha transeuncia. O problema é que eu sentia uma dor enorme enquanto eles me ezaminavam. Os filhos das mães simplesmente dividiram meu corpo astral em várias partes. Eu gritei de dor. Um deles olhou para mim e falou comigo só com o pensamento, daquela forma que conhecemos como telepatia: ‘Calma seu corpo físico permanece intacto’. E eu respondi: ‘Pode estar intacto, mas o que vocês estão fazendo com meu corpo astral dói pra cacete.’ Finalmente, o alienígena me tranquilizou: ‘A dor está está só na sua mente, mas agora acabou, e se você achar que seu corpo astral foi prejudicado nós lhe daremos um novo’. Isso é de dar um nó na cabeça, mas me deu também uma ideia e perguntei a ele: ‘Vocês não podem me transformar numa trauseunte em definitivo?’ O alienígena me olhou detidamente e disse: 'Isso já é possível em sua mente’. Para mim, a resposta foi um SIM. O alienígena me libertou e emendou: 'Neste universo onde vivemos há escolhas e possibilidades para todos os gostos. Noutros nem tanto'. Ninguém vai acreditar em mim, mas lhes digo que essas coisas realmente acontecendo o tempo todo. Talvez você acredite quando morrer e ficar perdido, vagando no espaço, pensando que está vivo. Os espiões astrais não mexem com os mortos porque, é óbvio, eles não têm mais o corpo físico e não servem para nada.



quinta-feira, 2 de maio de 2024

ANÁLISE LITERÁRIA ESTRUTURALISTA


 

MENSAGEIROS DA ENGANAÇÃO

Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

Meu amigo Zen, espero que você não se importe de chamá-lo de brother depois de seus 14 anos de afastamento, rompendo uma amizade de 20 anos. Somente no último dia 12 de Setembro de 2014 descobri, por acaso, na internet, que você morreu no dia 16 de Fevereiro deste ano. Acho que não foram poucas nem simples as razões que o levaram a se afastar, e. creio, que conheço algumas delas, mas somente você pode dizer quais foram os verdadeiros motivos. Na última vez que tivemos um encontro formal, na minha casa, por ocasião de minha festa de bodas de prata com minha ex-esposa em Abril de 2000, você estava muito bem, depois de ter se curado do alcoolismo. Estava magro, esbelto, elegante, só tomava refrigerante e vestia roupas incrementadas, próprias do gosto que temos em comum: calça jeans, camiseta preta e um colete descolado. Mas naquele dia eu já desconfiava que você estava de partida, pois isolou-se no quintal da casa e mal pude conversar com você. Talvez você não se sentisse à vontade sem a presença de  meu ex-irmão, seu amigo antes de me conhecer. Como você deve ter sabido, através da minha ex-família que me lançou no mercado da parentela como astro do mau-caratismo, dois anos mais tarde minha vida deu uma guinada de 360 graus. Divorciei-me e logo em seguida casei com a Cecília. Moramos um ano em Belo Horizonte, lá tivemos a Ana Carolina, e em Outubro de 2003 voltamos para São Paulo. No primeiro semestre de 2004, eu passeava com a Cecília e a Ana no Shopping Center Norte e, de repente, topei com você e a Fátima numa casa de sucos. Ao nos abraçarmos, pela primeira vez você deixou de ser espontâneo e proferiu uma frase rebuscada:
'Ah, o Alceu é uma pessoa que não dá para esquecer.'
Mas você tinha me esquecido e eu não estava chateado com isso. No entanto, você me surpreendeu com sua resposta à minha pergunta sobre como andava sua saúde:
'Alceu, nunca imaginei que depressão fosse assim tão terrível. Nunca imaginei que um dia ficaria semanas deitado numa cama, sem tomar banho, sem trocar de roupa, sem escovar os dentes, e fazendo um esforço hercúleo para poder ir ao banheiro.'
Na hora lembrei-me do dia em que sua mãe morreu. Você estava indignado com minha falta de consideração por não ter ido nem ao velório e nem ao enterro. Você perguntou ao meu ex-irmão:
'Por que o Alceu não veio?'
Ocorre, fratello, que naqueles dias minha  depressão, que nasceu e vai morrer comigo, tinha atingido o auge do sofrimento humano, a dor da alma, e como você eu estava deitado num sofá havia muitos dias, sem chuveiro, sem creme dental, com o mesmo pijama encardido, comendo e engordando como um porco, e me arrastando para chegar ao vaso sanitário. Nunca te contei isso porque você não iria acreditar e, como você, eu também não gostava de me justificar. Como sempre fiz, não por mera formalidade, mas por afeição mesmo, anotei num papel meu novo endereço e meu novo telefone e fiquei esperando você aparecer em casa, como nos velhos tempos. Mas eu sabia que nunca mais o veria. Para falar a verdade, não sentia saudades de você. Só falta de nossos encontros aos sábados, desde o meio da tarde até além da meia-noite, vendo vídeos e ouvindo rock britânico, jogando conversa fora e bebendo todas: vodca, uísque e cerveja, e é por isso que a maior parte dos nossos papos acabavam na lata de lixo. Obviamente, se estou escrevendo sobre você e para você é porque sua morte  deixou-me, no mínimo, triste, e porque quero prestar-lhe uma homenagem em agradecimento por você ter me concedido o privilégio de sua amizade por duas décadas. Mas não espere de mim a falsidade das pessoas que costumam elogiar à exaustão uma pessoa só quando ela morre. Sei que você teve uma juventude traumática e que nunca gostou de falar sobre isso. Foi meu ex-irmão quem me disse que quando você fazia nosso antigo científico do ensino médio no GEPEF em Jaçanã, onde também estudei, você já tinha nobres ideais e se engajou no movimento estudantil contra a ditadura militar. Você foi detido, interrogado, liberado, mas perseguido e vigiado durante dez anos. Todas as manhãs quando você saía para trabalhar, sempre havia um homem do outro lado da calçada te observando. E às vezes até dentro do ônibus que você tomava. E quando voltava para casa lá estava do outro lado calçada outro homem de olho em você. Foi também meu ex-irmão quem me disse que você queria ser médico. Tentou o vestibular três anos seguidos, mas não conseguiu passar. Talvez tenhamos perdido um grande médico, mas ganhamos um extraordinário jornalista. Eu também queria ser jornalista como você, mas desisti por medo e covardia. Tinha receio de enfrentar um vestibular com provas de ciências exatas, matemática, física e química. Então, simplesmente escolhi um vestibular que tivesse ciências humanas com maior peso nas notas. Fiz faculdade de Cultura, Língua e Literatura Americana e Britânica e depois Administração de Empresas na PUCSP, a mesma onde você fez jornalismo. Daí que ao final dos anos 70 estamos formados e trabalhando e vamos nos conhecer através de meu ex-irmão. Durante nosso primeiro encontro eu estava obcecado com minhas pesquisas sobre discos voadores e torrei seu saco por mais de uma hora contando histórias sobre os misteriosos UFOs. Qualquer pessoa teria evitado um chato como eu para sempre, mas você não o fez, e não sei porquê. Talvez porque você descobriu que tínhamos algo em comum, como você tinha com o meu ex-irmão: a música, mas  não qualquer uma: o rock, mas não qualquer um: o britânico e a Santíssima Trindade: o Pai (Beatles), o Filho (Rolling Stones) e o Espírito Santo (The Who). Apesar da relação de parentesco entre Pai e Filho, ninguém era cria de ninguém. Cada um inventou seu próprio estilo, e cada um de nós tinha sua banda favorita. Cada um de nós tinha seus problemas e suas carências. A sua percebi logo no início dos anos 80, quando você ainda trabalhava na prefeitura de São Paulo. Na tarde de um dia de semana você ligou da prefeitura para minha casa e eu atendi:
'Pô, Alceu, você esqueceu de mim? Não liga mais para mim? Não quer mais me ver? Vamos nos encontrar, pô!'
Você era solteiro e morava com seus pais e eu não tinha seus telefones. Quem os tinha era meu ex-irmão. Então te convidei para vir à minha casa no sábado, para a festa de aniversário de uma de minhas ex-filhas do meu primeiro casamento. Era uma festa só para crianças, mas você veio e juntos tomamos de tudo, menos refrigerante. Em descompensação, te flagelei como na paixão de cristo. Quantas vezes te obriguei a assistir ao mesmo vídeo do show do The Who de 1982? Perdi a conta. Não sei como você me aguentava. Meu ex-irmão contrabalançava as coisas e colocava vídeos de shows do Rolling Stones. Era divertido quando você me provocava.
'Alceu, o The Who é bom, mas os Stones são imbatíveis.'
Minha vantagem era ter o melhor baixista e o melhor baterista do mundo, a cozinha da banda e, para piorar, um compositor à altura de Lennon. Em nossos encontros nunca rolou música brasileira, mas sei que você gostava, e muito. Quando você pegava no violão, você tocava e cantava bem, sempre bossa nova, às vezes Jorge Ben Jor, e às vezes, radicalizava com músicas do ‘tremendão’. Você nunca se arriscava a tocar Beatles, Stones e The Who como eu. Às vezes você tinha acessos de loucura como, por exemplo, me dizer que a bossa nova foi a maior revolução na história da música no mundo. Toda pessoa super culta e inteligente como você tem um pouco de louco, embora exista por aí muita gente que é burra e doida ao mesmo tempo. Até meu pai sabia que foram os Beatles que revolucionaram e reinventaram a música e mudaram o mundo. Até o Pete, que ficou careta depois que criou a obra prima Tommy, surtou ao responder a uma pergunta sobre os Beatles: ‘Eles são iguais ao Herman Hermits’. E o repórter comentou: ‘Por favor, Pete, volte a beber e a se drogar’. Antes dos Moptops só havia Mozart, Beethoven, Bach e outros gênios da música clássica. E cá entre nós, bossa nova é música para boi dormir, para gente velha que pega no sono sentado jogando dominó. E nós não somos velhos? Já passamos dos 60! Mas este terquijo ainda tem dentro dele o mesmo jovem de 20 anos, rebelde, radical, ingênuo e cada vez que ele vai a Londres sempre traz novidades britânicas, novas bandas de rock formadas por garotos de 18 anos. Não sei que estado de espírito você levou consigo quando partiu, mas sei o que você deixou: um competente trabalho editorial no jornal da TV Bandeirantes: uma verdadeira revolução no telejornalismo esportivo quando você assumiu o comando do programa Vitória na TV Cultura e colocou somente nosso rock como música de fundo, algo que a Rede Globo copiou de você e usou no programa Esporte Espetacular como se fosse ideia original dela. E não foi por isso que você recusou um convite para trabalhar para ela, mas porque você a achava hipócrita e manipuladora da opinião pública. Mesmo assim, quando o Serginho Grossman veio lhe pedir um conselho sobre se deveria aceitar ou não um convite para trocar o SBT pela Plim-Plim, você, percebendo nos olhos dele o alto salário que lhe fora oferecido, simplesmente respondeu:
'Vá em frente, Sérgio, faça o que lhe dá prazer!'
Como esquecer as vezes em que você me dizia:
'Alceu, no próximo domingo vou abrir o programa Vitória com a primeira faixa do álbum Tommy do The Who, especialmente para você?'
Como esquecer o dia que você fez um programa especial sobre Eric Clapton em visita ao Brasil e enviou a equipe da Cultura à casa de meu ex-irmão para nos entrevistar na condição de fãs deste grande músico britânico. Como esquecer a entrevista histórica que você fez com o Pelé quando ele completou 50 anos? Quantas pessoas sabem (ou fingem não saber) que a revista Veja, nos seus áureos tempos, lhe concedeu o prêmio de melhor tele jornalista e produtor pelo seu trabalho original e inteligente? E só eu conheci a sua dignidade e integridade quando pediu demissão da ESPN Brasil porque lhe pediram para bater de porta em porta nas empresas para encontrar patrocinadores para seu programa.
‘Olha aqui, José Trajano, este não é meu trabalho, não é minha função, sou jornalista, por isso estou caindo fora. Isto vai ser bom para mim e para você também’.
Nunca fui inteligente, mas também tinha meus acessos de loucura. Certa vez, quando elogiei demais a banda britânica Cocteau Twins, de quem tenho o repertório completo, você me gozou:
‘Por que você não divide uma quitinete com eles?’
Que é isso, companheiro? Eles criaram seu próprio estilo, mesclando psicodelismo com sons celestiais e rock áspero, nada comercial. Quer saber de uma coisa, pouquíssimos músicos são capazes de compor uma canção como Fifty-Fifty Clown, tão complexa para os amantes do poeta Jean Cocteau, como Strawberry Fields Forever de John Lennon foi para os Fab Four. Há outras reprovações suas que aceitei de bom grado. Nos anos 90 andei me envolvendo com espiritualistas e, como de costume, te aporrinhei mais uma vez, sempre sob seu olhar de desaprovação, e acrescentei que eles, pelo menos, faziam caridade, formando grupos todos os fins de semana para levar alimento e roupas aos moradores de rua.
‘E daí, Alceu?’
Bem daí que ao menos eles tinham a consciência tranquila.
‘Que consciência, Alceu’?
Então me toquei. E como seriam suas vidas noite adentro ao relento, e durante o dia inteiro sob sol escaldante, frio e chuva, sem nenhuma perspectiva, sem um lar? Percebi, então, que meu trabalho de entrar em favelas para fazer triagens de famílias que iriam receber cesta básica durante um ano era uma tremenda cretinice. Eu não dava peixe e nem ensinava a pescar. Era muito cômodo esperar que os pobres viessem a mim de longe para buscar uma cesta de alimentos. Eles voltariam para seus casebres de madeira e de chão de terra, sem banheiro, urinando e defecando nos fedorentos esgotos a céu aberto, enquanto eu voltaria para casa de carro, deitaria confortavelmente num sofá, e assistiria TV a cabo, petiscando e bebericando. Só para mim você contou histórias tão íntimas.
‘Alceu, eu fiz algo diferente há muito tempo, num pequeno convento de freiras católicas que deixavam o hábito de lado, vestiam jeans, tênis e camiseta, pegavam ônibus e iam de encontro aos pobres, não para lhes dar alimento e roupas, mas para ajudá-los a construir uma vida. Alceu, você precisa conhecer mais gente.’
E precisava mesmo. Estou falando de um Zen cristão? Não! Até onde sei você é ateu como eu e, além de falarmos de música, tínhamos altos papos sobre política, filosofia, sociologia, antropologia e até psicologia – sorry por meu descalabro, nunca esqueço quando você me disse que comeu sua terapeuta em cima da mesa dela.  E você não escondia sua simpatia pelo regime socialista dos soviéticos e cubanos.
‘O povo não deveria gastar dinheiro com saúde, educação, habitação, transporte e nem alimentação. Isso é obrigação do governo.’
E você tinha ojeriza aos imperadores americanos que estão a mais de um século à nossa frente, não só em tecnologia, mas também em moralidade. Mas é claro que eles não são santos. Ninguém é santo neste planeta, nem o papa, nem o rabino que afanava gravatas de grife em Miami, nem o Dalai Lama e nem Madre Tereza. Você chegou a ouvir falar de suas ‘noites escuras’ quando, já na velhice, ela colocou em dúvida a existência de Deus? Oras, dirá você, ser ateia não a transforma numa pessoa menos caridosa. E você sempre teve razão: um ateu é muito mais útil que um religioso. Seu talento é proporcional à sua modéstia. Você nunca falou de si mesmo para ninguém. E quando descobri, por acaso, que você tem uma página no Facebook, ao contrário de muita gente de TV, jornal e revista que se acha uma celebridade, você jamais postou o que você fez, o que faz e o que vai fazer, jamais escreveu sobre tudo que você realizou na sua carreira de grande sucesso, jamais postou onde você esteve e onde estará, jamais disse quem você é. Você nunca foi aparecido, nem materialista, nem ambicioso. Nunca se vendeu por dinheiro. E deixou o estrelismo contagioso das grandes emissoras para ganhar menos e trabalhar em emissoras desconhecidas, como a TVT, seu penúltimo emprego e, antes de morrer, o SESC onde você estava realizando um projeto de música instrumental brasileira. Lembra-se quando, numa de nossas bebedeiras, lhe perguntei: ‘Vamos escrever um livro em parceria?’ E você, com aquele sorriso de um canto da boca, retrucou:
‘Alceu, você precisa parar de beber.’
Não sei se você referia-se somente à minha presunção ou à sua humildade também. Escrever um livro é tão fácil como juntar letrinhas, como você dizia. Difícil é ter uma grande ideia como Ulisses de James Joyce, A Clockwork Orange de Anthony Burguess, 2001: A Space Odyssey de Arthur Clarke, 12 Monkeys, filme  inspirado no curta-metragem francês La jetée, de Chris Marker.   Enfim, o fato é que já escrevi alguns livros que serão condensados num só chamado EM ALGUM LUGAR NA ESPÓRA DE ÓRION. Um deles, chamado Vale Da Amoreira, é promissor. Inspirei-me numa de minhas experiências extrassensoriais, e reservei um lugar nele para você. O narrador diz que Tilly, personagem coadjuvante, conheceu você e ele lhe pôs o apelido de Mensageiro da Enganação. Isto não é uma crítica ou uma ofensa a você, mas apenas uma gozação, porque continuo sendo um gozador como você. Eu (e outras pessoas de meu convívio que você conheceu) achava engraçado o hábito que você adquiriu de marcar encontros, não comparecer e nem se justificar. Nunca  fiquei chateado com isso, apenas lamentava ter perdido mais uma oportunidade de desfrutar de sua boa companhia. A ideia para este apelido veio de um livro que li em inglês, chamado MESSENGERS OF DECEPTION, do cientista francês Jacques Vallée, com quem conversei na NASA nos EUA. Este livro foi mais tarde traduzido no Brasil com sua alcunha, MENSAGEIROS DA ENGANAÇÃO, e o achei apropriado para nós dois, porque somos todos ‘Deception Messengers’, ‘Midnight Ramblers’, mas não daqueles serial killers como os famosos ‘Boston Stranglers.’. Em todos os textos que escrevo sempre incluo uma música, porque, como você sabe, aquele grande filósofo que nós dois tanto admiramos escreveu que sem música a vida seria um erro. Por isso até hoje não entendo como os gregos da época clássica, do século de Péricles, escreviam coisas tão inteligentes sem poderem se inspirar nas músicas que temos hoje. Não é à toa que eles são considerados os mais inteligentes deste planeta, o berço de nossa civilização ocidental. Portanto, estou incluindo um vídeo de sua banda favorita, os Rolling Stones. A música que escolhi é de um show ao vivo quando eles estavam no auge no final de nossos gloriosos anos 60. Tenho certeza que você venderia sua alma ao diabo se ele pudesse te levar para assistir àquele show. Resolvi incluir uma outra música que você vai achar um pé no saco como a bossa nova é para mim. Ela não é muito boa, mas, enigmaticamente, ela traduziu meu estado de espírito enquanto escrevia este texto e me lembrava de nossos tempos juntos. Talvez ela seja apenas mais uma de minhas muitas carências. Mande um abraço aos nossos ídolos: os seus: Brian Jones e Jimi Hendrix; os meus Keith Moon e John Entwistle; e nossos unânimes: John Lennon e George Harrison. Até breve, se você ainda quiser voltar a ser meu amigo.
São Paulo, Setembro de 2014.