domingo, 30 de junho de 2024

SÓ COM ESTAS ÁGUAS

 Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.  

O vaivém da onda espumante, Molha e refresca num pequeno instante, Solitária água que lava a praia, Até que o dia nasça e a noite caia, Deixa marcas indeléveis de eterno som, Como duas cordas afinadas e vibrando no mesmo tom, Convida para nadar em um mar profundo, Para mostrar o que vale a pena no mundo, Troca o medo de se afogar, Pelo verdadeiro e único amigo que se deseja encontrar, Sustenta a vida à flor de suas plácidas ondulações, Com o frescor de favoráveis monções, Amalgama-se com ela como uma única alma habitando dois corpos, Endireita os paus que nascem tortos, Conhece-lhe todas as habilidades fora de forma, Destituídas de qualquer norma, Mantém a limpidez mesmo quando o mau tempo a deixa revolta, Conserva-se sempre livre e solta, Nada cobra pela sua bonança, Torna realidade o que era só esperança, Cuida com amor o que é um adorno do coração, Que só a verdade que dói pode afagar com a mão, Não é dona de novos horizontes que sempre estiveram ao alcance, Não permite que a mentira que só agrada avance, Compensa o confinamento no terço do solo imposto contra a vontade, Sem provocar contrariedade, Com dois terços de sua abundância para se escolher, Presentes de Deus que se recebe sem perceber, Compartilha o anseio de se calar, Transformando horas de silêncio no maior prazer de se conversar, Alegra-se com a paz de espirito dentro de si vivida, Que de sua boca jamais será ouvida, Orgulha-se da energia renovada por conta de um esforço que não é seu, Mas somente daquele que sem nenhuma segunda intenção o mereceu, Não revela os desígnios de sua profundeza, Só quem é amigo conhece sua franqueza, Exceto para aprofundar o espírito de quem a procura, Uma companhia que todos os males cura, Guarda as mais secretas advertências bem longe do continente, O que de melhor pode se esperar de uma confidente, E alardeia alto e bom som em terra firme quem esteve em alto-mar, Quem coloca amizade ao lado de amar.

quinta-feira, 27 de junho de 2024

ESCREVER POEMINHAS TAMBÉM É JUNTAR LETRINHAS?

 





Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.  

Mal conto obter, Um disco voador aparecer, Para relativizar meu tempo, Do por do sol que morre breve à claridade rósea iluminando o alvorecer, Não vejo a hora, De ir embora, Navegar o rio imprestável com uma igaratá, E chegar ao vale para frutescer o pé de amora, Não quero mais ficar aqui, Levem-me para qualquer sambaqui,  Pre-historia-me na américa de Vespúcio, Até eu evolver para um índio cherokee,  Don´t wanna be a bluebeard, Don´t wanna be feared, I wish I was a rolling stone that gathers no moss, I wish I was a moptop going weird, Delfos vai me dar o oráculo, O messias vai cear no meu cenáculo, Lúcifer vai ser meu convidado, Deus disse que não vai ser um obstáculo, Vivo lutando, A vida ensaiando, Ficando sem mel nem cabaça, Gêmeo criança do meio coadjuvando, Bem posso apressar, Uma estrela definhar, Ela é um quasar que chega aos meus olhos, Mas não posso ouvir seu pulsar, Enxergo o tempo, A tempo de sentir o vento, A tempo de normalizar a aceleração e o afrouxamento da canção, Meu relento é de trampa e urina por falta de arejamento, Porque o mundo é redondo, Estou rodando, Ele me gira, E a pombagira vai me incorporando, I cannot win the toss, I cannot carry that heavy cross, Lay me out once more, Let me be my own boss, Porque o céu é azul, Vou de aloés e cardamomo com ar taful, Porque quero me revestir de alta dignidade, Minha suprema aspiração é o curul, Porque o vento sopra forte, Derramo lágrimas de toda sorte, Espero morrer antes de envelhecer, Espero morrer antes da morte, Porque minhas morte-cores são ordinariamente vivas, Me falta o negro como ébano, Me falta o limão, Me falta a ágata como ônix, Me falta o açafrão, Já tenho o branco do marfim, Me falta o carvão.

quarta-feira, 26 de junho de 2024

SOLDADOS SINTÉTICOS

Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.  

De vez em quando, Ainda vejo no espelho, A alma de menino em meus olhos, E quase sempre o reflexo de cabeça branca, Carquilhas demarcando as fronteiras do rosto, Os ombros um pouco retacos, Como negro acostumado a bolear o fardo da vida, As sacas de café e batatas nos ombros portuários, E aos poucos, As madeixas vão lentamente se perdendo, Preparando-se para setenta e uma primaveras, Mas ainda não para serem assentadas, Meu coração ainda fervente, Mantém membro e bagos em elevada temperatura, Com poucos cabelos na mão, De meu amor a paixão em latente ardência de verão de Fevereiro, De sol, Praia e suores, Penetra-lhe com suave calor suas carnes, Como de braceletes o ouro em brilho quente, Morde-lhe com volúpia seus lisos braços, Domina-lhe os nervos, Entra-lhe como vento por uma janela largada aberta, Sacode-lhe frouxamente as cortinas, Até que um dilúvio de luz cai do alto de sua fronte como pano sobre o palco do teatro de nossas existências e cega-me, E às vezes me perco, Como me perdi com menos de trinta e perguntava se, Quando tivesse meia quatro, Você ainda precisaria de mim, Cuidaria de mim, E me via como um homem útil, Capaz de trocar uma lâmpada, Você tricotando junto à lareira, Fazendo piquenique e jardinando aos domingos, Com netos sentados no colo à tarde, Mas continuo o mesmo soldado desde o dia que nasci, Seu aliado em guerra contra a aversão do mundo mais de seis décadas afora, Desalojado das trincheiras, Mantido no front modorrento, Nublado de fumaça asfixiante, Tresandando corpos putrefatos, Um inferno sufocante, Numa batalha desigual e solitária, E por saber ainda como manter o nariz fora d´água, Inalar ares finos e puros que adentram a alma, E nela espalhar obstinação e força, Por ser árvore que se verga ao peso de mágoas excruciantes, Sem ter um único galho quebrado, Por não me defender com armas convencionais e letais, Que mutilam e matam, Sou cunhado como uma incômoda e sintética moeda desumana, Que insiste em manter-se em circulação. 


ENCARNAÇÃO

Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.  

ADEUS À CANDIDA B. Z. NATALI - 1927 - 2024

Adiemus, Adiemus!
Aproximem-se todos
Vocês que são da Itália e de Portugal
Querem filhos franceses ou brasileiros?
Abram os olhos porque vocês já estão no paraíso
Abençoada seja esta terra que vos acolheu


Adiemus, Adiemus!
Entrem numa casa de espanhola sem a filha saber
Perguntem às mães, às avós e aos seus cães vivos e mortos
Querem ilusionismos houdinianos ou cândidas adivinhações?
Mantenham os olhos fechados porque vocês estão dentro de um sonho
Abençoado seja este sono que vos repousa


Adiemus, Adiemus!
Ousem intrometer-se num enterro da aristocracia negra em Paris
Peçam para deportar vosso caixão do velho para o novo mundo
Querem filhos submissos ou libertos?
Abram os olhos porque a escravidão foi abolida
Abençoada seja esta miscigenação que vos contemplou 


Adiemus, Adiemus!
Pasmem com o veludo púrpuro que forra todas as paredes
Digam adeus às aulas de balé e língua estrangeira
Querem filhos de reis ou de trabalhadores?
Fechem os olhos para os que vos deserdaram 
Abençoados sejam os que a vós se irmanaram


Adiemus, Adiemus!
Cantem com mãos erguidas ao céu
Façam estalar todas as castanholas das ciganas espanholas
Querem dançar flamenco e baião ao mesmo tempo?
Abram os olhos para o verde exuberante
Abençoado seja o amarelo de nossas bandeiras 


Adiemus, Adiemus!
Deixem os céus tempestuosos
Venham para os solos férteis
Seus filhos são todos estrangeiros
Embarquem nos mesmos navios negreiros
E aportem na água, na terra e no fogo prometido aos mortais


terça-feira, 25 de junho de 2024

VIGÉSIMA QUINTA HORA


Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

ADEUS AO ARNALDO NATALI - 1956 - 2024

As linhas de seu fim, Sinalizadores de sua efemeridade, Cada um dos sulcos que marcam a palma de suas mãos conhece todos os escuros e tortuosos meandros de sua alma, Os desígnios de suas aspiradas transcendências, As inexorabilidades de seus incompreendidos mundos, Sua Alma, Sua Palma, Esconda-se da luz do dia até que a noite caia, Não carece ainda dormir sem acordar, Dissipe de sua memória os que nunca imaginaram estar em seu lugar, Em seu abandono, Em sua revolta, Nenhuma lágrima sua deve ser derramada sobre os sepulcros onde todos os que não querem ver jazerão, Nenhuma de suas vesguices pode enxergar pelo que seus olhos choram com voz embargada, Nenhum pensamento seu deve ser levado de volta às suas melhores lembranças das quais eles se fartaram até se olvidarem, Que os dias que lhe restam apaguem tudo, Até mesmo o que Deus ainda está por vislumbrar, Que se cultive a virtude da obliteração, Dos repetidos erros de qualquer passado, Das pretensas regenerações de qualquer futuro, Quando os espectros dos mortos começarem a errar à sua volta e a se lamuriarem, Pegue a estrada e viaje sem destino, Sem se deter, Madrugada adentro, Por caminhos desolados, Aqueles que pelo criador não são lembrados, Guie-se somente pelas luzes das estrelas até que os primeiros raios de sol as apaguem, Quando você chegar onde não há mais nenhum sinal de vida, Aí você deve parar, E esquecer de mim, Para ser ninguém, Ter somente seu avesso por companhia, Sem aqueles olhos cegos que te tateiam, Numa criminosa injustiça por suas deficiências de que são os primeiros testemunhos, Sem aquelas bocas dormentes que te bocejam, Numa impiedosa indiferença por sua suprema provação que fingem desconhecerem, E, Então, Caminhe, Até encontrar a porta que se abre na vigésima quinta hora, Adentre-a, E fique à mercê do imponderável e do intangível, Estes majestosos senhores da eternidade e do infinito, Venerados e rogados, Por todo impetuoso espírito, A um só tempo carente e valente, Por uma única disposição, Uma única ideia factícia, Nestas palavras tão escatológicas, Neste tempo extra tão adormecido, Que só de sonhos se levanta.

VESTIDA DE MODÉSTIA



Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

A lua dona da noite, O sol do dia, A terra de sua vida, O ar da respiração murmurada, Para os ventos gerais reinarem, Renderem-se à doidice de seus sopros, Feito bando solto de demônios travessos e brincalhões, As nuvens carregadas não tomadas por Juno, Para Zeus brandir o raio com que troveja, Num relâmpago sobre dezoito chuvas, De muitas primaveras por viver, Sobre meus outonos avançados, Cobertos com o branco e vermelho de minha antiguidade, Sob seu pleno viço, De olhos negros, De alma da cor do mar profundo em tempo límpido, Despe-se do amor-próprio, Qual árvore das folhas, Qual névoa rompida pela luz da manhã, Toda veste-se de desapego e suficiência, E caminha para o universo, Para uma festa à fantasia de buracos negros, Com sua aura luminosa de horizonte de eventos como único adereço, Tocando nos infinitos astros de meia-claridade que lhe guarnecem o espaço, E de espaço, Ouve-se notas longínquas de uma melodia que escapa-lhe de boa mente, A cantarolar palavras no interior de uma simplicidade singular, Vedada ao mundo, Ocupado com a loucura de suas importâncias, Feito solitário preso em anjo desenxabido e macambúzio. 


domingo, 23 de junho de 2024

TRANSLITERAÇÃO DO SENTIMENTO

Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 



Não me engano com palavras a não ser em sonhos, por isso quando me falaram de Valedana Moreira eu sabia que não existe um município com este nome, mas ele é muito parecido com outro de uma cidade verdadeira e foi relativamente fácil para eu identificá-la, auxiliado pelo conhecimento que tenho da mania de se cometer frequentes lapsos de leitura, fala e audição em sonhos. No entanto, em mim, esta mania não se fixou como uma perturbação permanente da memória em que as mesmas palavras são sempre lembradas fora do seu significado exato. Eu cometo estes enganos involuntários em situações únicas que nunca se repetem, e eu mesmo os reconheço e os corrijo. Muito peculiar é o fato de eu cometer tais erros inconscientes não apenas por simples transliteração, mas por acréscimos de letras a uma palavra, mudando-lhe o sentido, mas sem subtrair suas letras originais e sem alterar a ordem das mesmas. Certa vez, enquanto conversava com uma freira, subitamente chamei-a de enfermeira por engano. Eu havia acrescentado as letras e, n, e , m à palavra freira, sem alterar a ordem de seus vocábulos. Freira é um substantivo que cabe dentro de outro, enfermeira, sem alterar a ordem das letras de ambas: enfermeira. No caso da cidade em questão que tinha um nome composto, foi acrescentada apenas a letra n à primeira palavra e a ela também se agregou a preposição e a primeira letra da segunda palavra. Assim, o verdadeiro nome da cidade, Vale da Amoreira, foi transliterado para Valedana Moreira. O incidente com a freira ocorreu durante minha passagem pela Inglaterra medieval. Eu estava perdidamente apaixonado por uma jovem de 18 anos, e queria casar-me com ela. A moça de olhos meigos também gostava de mim, mas ela já tinha decidido tornar-se uma freira antes de me conhecer. Tentei várias vezes demove-la desta ideia, sempre em vão. Ela entrou para um convento e me foi permitido visitá-la uma última vez para me despedir e nunca mais vê-la. A madre superiora, de cara fechada, abriu os enormes portões do castelo onde se abrigava o mosteiro, e foi ela quem me advertiu que seria a última vez que eu adentrava aquele majestoso palácio rodeado de frondosos e imensos jardins. Fui conduzido a uma antessala ainda no piso térreo. Aguardei alguns minutos e logo ela apareceu já vestida de freira. Seu rosto com cabelos cobertos continuava lindo, e seu olhar plácido e comovido com minha desesperação. Nosso diálogo foi curto, sofrido e inesquecível. Ela disse-me que também me amava, mas que naquela vida ela tinha escolhido servir a Deus. Repeti várias vezes a ela que havia várias maneiras de servir a Deus. E ela se limitava apenas a me olhar com compaixão. Nossa conversa transcorreu em português o tempo todo. No momento em que me preparava para esbravejar mas você não precisa ser uma freira para servir a Deus, eis que, sem perceber, falei em inglês but you don’t have to be a nurse to serve God. Em seguida, a madre superiora interrompeu nosso diálogo dando-o por terminado. Vi minha amada saindo, olhando para mim com um sorriso feliz e dizendo adeus. Fui escoltado para fora do castelo e a madre superiora reiterou: não quero vê-lo aqui nunca mais. No dia seguinte, pela manhã, me dei conta do erro que cometi. Ao invés de dizer you don’t have to be a nun to serve God (você não precisa ser uma freira para servir a Deus), eu disse you don’t have to be a nurse to serve God. (você não precisa ser uma enfermeira para servir a Deus). Isso me pareceu incrível porque tenho completo domínio da língua inglesa e falar inglês para mim é o mesmo que falar português. Portanto, eu jamais confundiria a palavra nun (freira) com nurse (enfermeira). No estado onírico, eu cometi uma verdadeira transliteração que se define como a representação dos caracteres de um vocábulo por vocábulos diferentes no correspondente vocábulo de outra língua. Comparada com a relação entre as palavras freira e enfermeira descrita acima, minha transliteração em inglês suprimiu uma letra, o n de nun, e acrescentou outras três,rse de nurse. Na pronúncia não houve um aumento porque as duas palavras em inglês são monossilábicas, mas na escrita houve um aumento de três para cinco letras. Mesmo sabendo que tudo é possível num sonho, continuei intrigado com a transliteração. Lembrei-me, também, que na noite anterior eu assistira ao filme Lady Jane, a jovem rainha inglesa que reinou por apenas onze dias e foi decapitada. Talvez, pensei, tenha sido esse filme que me remeteu para a Inglaterra medieval num sonho. O mais estranho ainda estava por vir. Na semana seguinte ao sonho não consegui trabalhar. Todas as manhãs quando me levantava e me lembrava do sonho passava mal. Faltei ao trabalho a semana inteira. Não tinha a menor ideia do que estava acontecendo comigo. Por isso não queria nem mesmo ir a um médico porque não saberia dizer a ele o que eu tinha. Minha ex-esposa, ex-católica convertida ao espiritismo, recomendou-me tomar um passe num conhecido centro espírita onde eu fiz um grande amigo. E na sexta-feira lá fui eu falar com meu saudoso amigo espírita que partiu há mais de uma década. Envergonhado, contei-lhe tudo: o sonho, o filme, o mal estar, minhas faltas no emprego. Serenamente, ele disse-me que eu havia voltado a uma vida passada que me causou um enorme sofrimento e acrescentou: este sofrimento termina hoje, agora mesmo. Ele me deu um passe e, fazendo um trocadilho, meu mal estar despareceu como num passe de mágica. Voltando ao trabalho na outra semana, eu ria de mim mesmo, sentindo-me ridículo com o mal estar que me fez faltar ao trabalho na semana anterior. Este episódio levou-me a fazer muitas reflexões. Lembrei-me que há muito tempo atrás, minha filha mais velha teve muitos problemas entre os sete e os dez anos. Por respeito a ela, não vou revelar que problemas ela teve na infância. Sua mãe, minha ex-esposa, recorreu a todos os possíveis tratamentos. Mãe que é mãe vai até o inferno se for preciso para ajudar um filho. Ela ainda não era espírita, mas por recomendação de um parente, foi feita uma sessão espírita dentro de minha casa. A médium ‘recebeu’ vários espíritos, todas mães italianas reclamando da morte de seus filhos na guerra. Ao final da sessão, a médium explicou que havia em minha casa um espírito perturbando minha filha e que ele já havia sido encaminhado e que minha filha iria melhorar. E, de fato, minha filha melhorou, como num passe de mágica. Naquela noite, o que mais me impressionou foi o que a médium falou a meu respeito. Disse ela que me viu todo estropiado esperando atendimento numa tenda no meio do campo de batalha numa guerra. Disse ainda que minha filha lá estava trabalhando como enfermeira e que eu lá morri antes de receber atendimento. A médium estranhou o fato de que dentro daquela tenda os feridos não estavam sendo apenas tratados. Os médicos pareciam estar fazendo algo além de um simples atendimento, algo parecido com um tipo de experiência. Esta reflexão levou-me a fazer uma experiência por conta própria: uma viagem astral. O quê? Viagem astral? Podem rir se quiserem, mas tenham em mente que quem aqui escreve não tem religião, é ateu de carteirinha e não acredita na vida após a morte, mas acredita na energia do pensamento, no inconsciente coletivo, na projeção da consciência para fora do cérebro durante o sono. Eu consigo, quando quero, projetar minha consciência para fora do meu corpo, sair por ai à noite, viajar para o passado e o futuro, conhecer pessoas novas, cidades e países onde nunca estive. Nem sempre consigo ir onde e quando quero, mas, às vezes, consigo. Então certa noite, saí de meu corpo, voando pela janela do segundo andar e resolvi ir à casa de meus pais num bairro vizinho. Lá chegando, notei que todos estavam acordados e preocupados. Minha filha mais velha aparecia como uma criança de colo que estava doente, e o pessoal na casa se alvoroçava à procura de um médico. Eu via todos na casa, mas eles não me viam andar no meio deles. Porém, para minha surpresa, divisei duas freiras, duas jovens morenas lindas de morrer, com túnicas roxas e uma enorme cruz branca estampada na frente. Elas lá estavam fazendo vigília, invisíveis aos olhos do pessoal da casa, mas me enxergavam, e olhavam-me com ar de reprovação como se estivessem me dizendo: sua pequena filha está doente e, ao invés de ajudar, você vem aqui para passear. E eu estava passeando mesmo, passeando num tempo passado quando minha filha ainda era um bebê. Fiquei encabulado, como alguém que foi pego em flagrante, então saí de fininho e voltei para minha casa. Eu sempre tive uma relação muito difícil com minha filha, principalmente depois de sua adolescência. Uma relação de medo que virou revolta e, finalmente, ódio e inimizade. Uma relação que translitera os sentimentos, que faz com que a fé tenha uma  expressão de fome em seu rosto. Foi com base nestas experiências e numa pintura retratando Lady Jane no momento que ela está sendo preparada para ser decapitada, que eu escrevi, como desfecho desses sentimentos transliterados as palavras: Minha querida donzela, Que zomba da realeza, Que lê Platão, Prometo que falarei com Deus, Quando você partir, Farás um pacto com Ele, Para salvar almas, E eu sacrificarei a minha, Prometo que voltarei a te ver, Mas não me reconhecerás, Farás um pacto com tua nação, Para salvar corpos, E eu sacrificarei o meu, Prometo que trarei você para junto de mim, Mas não me lembrarás, Faremos um pacto de sangue, Para salvar nossos tempos perdidos, Mas acabaremos inimigos.


quarta-feira, 19 de junho de 2024

O RETRATO DE UMA ALMA

Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 



Sempre tenho ideias, coisas para dizer, para escrever, fatos que incomodam-me enquanto não conversar com eles, sentimentos imprecisos que inquietam-me enquanto não tentar entende-los. Para lidar com essas impressões, concretas e abstratas, reais e imaginárias, preciso de ajuda, ajuda de algo que sensibilize a alma, que a alimente com lágrimas emotivas e incensuráveis. Quando procuro ajuda, impaciento-me para encontrá-la mas, quando menos espero, ela desponta, cantando para mim sem saber que veio socorrer-me, acreditando ter encontrado alguém que a ouça com os ouvidos da alma. Então digo o que tenho para dizer e o som numinoso alegra-se com nossa empatia, mas ainda pede-me uma imagem que registre para sempre este encontro mágico, entre o pensamento e a voz do princípio vital. A feição da alma muda a cada milionésimo de segundo e é impossível captar o exato e raro momento em que ela sincroniza o elemento psicóide da natureza com a transcendência da reflexão humana. Lembro-me de uma vez quando sonhei que eu era um pintor e me pediram para explicar o sorriso de Monalisa. Eu falei com desenvoltura por meia hora, esgotei todos os meus conhecimentos sobre técnicas de pintura e conclui que não sabia dizer de onde veio aquele sorriso da Gioconda. Os que indagaram-me, explicaram-me que o sorriso dela partiu do coração, antes que o cérebro recebesse qualquer estímulo. Por isso, deixo estas imagens surgirem ao acaso, e elas aparecem, supostamente indiferentes, mas já produzidas com propósitos definidos e perdidos, um dos quais sempre vem ao encontro de minhas necessidades antes mesmo que elas tenham nascidas. Há pouco tempo, tive uma sensação incomum. Apareceu diante de mim o retrato de uma alma pedindo-me para explicar-lhe que devaneios divinos e que cânticos angelicais registraram sua imagem. Minha querida, eu te chamo de querida porque a alma é feminina, enquanto o corpo é masculino, e a mente, que une os dois, é a sizígia, ou a própria anima que é a interlocutora entre a psique e seu centro regulador que chamamos de Deus. Minha querida, eu gostaria de ser puro, como o branco, mas não sou, e, se você acha que tenho alguma inclinação à alvura, não se engane, pois sou um ser ambivalente e o que você vê em mim é o positivo do retrato de minha alma, mas negativamente carregada de todas as misérias humanas resgatadas de volta a uma caixa de Pandora, e recomposta de todas as cores do espectro devolvidas à sua fonte original através do mesmo prisma que as separaram, transformando-me no enganoso vazio total e neutro da cor que não representa apenas a ausência de cores ou a soma de todas elas, mas também uma contraposição ao nada que é gelado, escuro e assustadora e desproporcionalmente maior do que o insignificante todo para o homem, essas pedrinhas luminosas e solitárias que salpicam o breu sem-fim. Se eu me desvio para o branco, não é porque eu sou puro, pois nem mesmo meus terapeutas tiveram acesso ao meu lado sombrio, e nem porque sou um pacifista por convicção, mas por conveniência, pois minha apologia a não violência é apenas um simulacro para camuflar meu medo, daí o fato de minha face, às vezes, parecer estar pálida de sobressaltos. Na verdade, eu sou um medroso e sempre amarelo, mas sem as rédeas curtas de minha fobia social e de meu acanhamento, posso transformar-me numa fera indomável, como a matiz áurea que rechaça todo tipo de atenuação e transborda da tela onde o pintor tenta enclausurá-la com outras nuanças. Mas você é sublime, mais alva que o branco supremo, por isso muda de cor, como o negro do ébano que parece azul de tão negro. E você é como o branco do marfim que parece rosáceo de tão branco. Quem te fotografou, imaginou a vida como ela deveria ser hoje, e sua imagem deve ter sido captada ao som do que os cientistas chamam de big bang, quando o universo foi gerado, e as predisposições para cria-lo não são dos mesmos que tiveram a ideia de inventar Deus, antecipando que ele seria uma explicação plausível para este momento singular de sua alma.



domingo, 16 de junho de 2024

MI BICHITA

Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.  

Ela bota ovos de peru na cara como Perrie Edwards e um chinó à la Mary Quant para chapelar sua quimio, Desenfia uma tigh high negligé para expor seu despudor, Parlez vous français?, No, En Galia no te bañas todos los días, Queima papel de galo, Deita-se com ave-marias e acorda com galinhas, Mi bichita, Mi estela de amor, Você é um avião supersônico de tirar minha sonoplastia e minha soniloquia, Você é um violão sem braço que vai pras cabeças, Estica 12 cordas e não areia mais que 69 caçambas, You are zer gut pour mois, Ela dança o ventre livre como Natasha Atlas e a fertilidade como Tutar Sagdiyev, Filha de Borat Margaret Sagdiyev, Êtes-vous sûr de ne pas parler français?, Sí, estoy segura, los estadounidenses no dejaron que los galos hablaran alemán.

quarta-feira, 12 de junho de 2024

DEUS


Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

Faria de tudo para deixar de ser ladrão, Deixar de ser mentiroso, Multiplicaria meus pedidos de perdão, E cometeria os mesmos erros de novo,
 
Esquecer-me-ia de você nos bons tempos, Riria dos crentes, Atrairia para mim outros tormentos, Choraria, tremeria e rangeria os dentes,
 
Então à noite me apegaria a você, Até as estrelas pararem de brilhar, Vararia a madrugada clamando por você, Até minha última lágrima secar,
 
Faria de tudo para deixar de ser odiado, Deixar de ser maldoso, Imploraria ao mundo para ser perdoado, E me revoltaria com seu amor silencioso,
 
Lembrar-me-ia de você nos maus tempos, Faria mais promessa, Provocaria no próximo outros lamentos, Arrepender-me-ia sem pressa,
 
Então à noite me entregaria a você, Até a terra parar de girar, Ficaria ajoelhado diante de você, Até meu último soluço cessar,
 
Faria de tudo para voltar no tempo, Recomeçar a vida, Passaria pelo mesmo sofrimento, E não sairia do ponto de partida,
 
Inventaria você para lustrar meu ego, Pronunciaria seu nome em vão, Desvirtuaria o aleijado e o cego, Esquecer-me-ia da minha devoção,
 
Então à noite eu jogaria praga em você, Até a lua da meia noite minguar, Sonharia o tempo todo reclamando de você, Até minha última cólera se saciar,
 
Faria de tudo para provar sua inexistência, Lançar minha teoria, Proclamaria a infalibilidade da ciência, Orgulhar-me-ia de minha sabedoria,
 
Anunciaria ao mundo sua morte, Atribuiria tudo ao acaso, Abandonaria tudo à sua própria sorte, Sentiria muita dor pelo meu descaso,
 
Então à noite desejaria ser você, Até o universo morrer e renascer, Recriar-te-ia novamente à minha imagem, Até um dia te conhecer.

terça-feira, 11 de junho de 2024

HOJE À NOITE

Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa  com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 


HÁ UM AVIÃO ESPERANDO POR MIM NO AEROPORTO
FORAM TRÊS DIAS TOMANDO BANHO DE CIVILIZAÇÃO
OXFORD ESNOBA CHARME COM MULHERES DE ENFEITE
OLHOS AZUIS NAS LOIRAS BONITAS DE ROUPA E CORPO
PINTAS NOS ROSTOS DAS RUIVAS ESCULPIDAS À MÃO
OLHOS VERDES NAS MORENAS BRANCAS COMO LEITE


PICADILLY CIRCUS TEM ROUPA DOS ANOS SESSENTA
TEMPOS E LUGARES ONDE EU DEVERIA TER CRESCIDO
SINTO-ME UM JOVEM BEM MENOS DE MEIA-IDADE
PROVO DA CULTURA COM PALADAR E QUE SUSTENTA
JÁ EXPERIMENTO DÉJÀ VUS COM O SEXTO SENTIDO
JÁ ESTIVE AQUI COMO OUTRA PERSONALIDADE


MARYLEBONE TEM IGREJA QUE NÃO SERVE PARA REZAR
DO ALTO DE SUAS PRATELEIRAS DESCE UM TOMO RARO
CRISTÃOS VENDENDO LIVROS QUE DESAFIAM A FÉ CRISTÃ
SEM ELES JAMAIS SABERIA DE SEGREDOS A DESVENDAR
PAIXÃO DE CRIANÇA E CONHECIMENTO QUE ME É CARO
DISPENSA DEUS, FÉ CEGA, DOGMAS, MITOS E VIDA VÃ


HOJE À NOITE SINTO AMOR
HOJE À NOITE SINTO ENCANTO
HOJE À NOITE SINTO FERVOR
HOJE À NOITE NÃO HÁ PRANTO
HOJE À NOITE NÃO HÁ DOR
HOJÉ À NOITE NÃO HÁ TANTO


CARNABY TEM PSICODELISMO QUE VIROU UM CÂNTICO
ESPECTROS DOS BEATLES VOAM EM TODOS MOMENTOS
O AUGE DA CRIATIVIDADE E VIRTUOSISMO RECEBE PALMA
INSPIRAÇÃO QUE VEIO DO OUTRO LADO DO ATLÂNTICO
A MELHOR MÚSICA DO PLANETA DE TODOS OS TEMPOS
DEU UM VERDADEIRO SENTIDO AO ALIMENTO DA ALMA


LONDRES TEM A MESMICE TURÍSTICA COMO TODA CIDADE
O TÂMISA CARREGA BARCOS COM MUITOS PASSAGEIROS
O BIG BEN NÃO ATRASA UMA ÚNICA FRAÇÃO DE SEGUNDO
MADAME TUSSAUD MOLDA EM CERA TODA CELEBRIDADE
A RAINHA TROCA SUA GUARDA SÓ PARA ESTRANGEIROS
A TORRE NÃO DECEPA MAIS A CABEÇA DE TODO MUNDO


O BRITISH MUSEUM TEM O LIVRO DE ANI DA EGIPTOLOGIA
A ABBEY ROAD TEM FAIXA DE PEDESTRES QUE VIROU MIMO
O HYDE PARK TEM BANCOS COM NOME DE GENTE DE NEON
O MARQUEE CLUB TEM O THE WHO COM TODA SUA MAGIA
A DARTFORT TEM PEDRAS QUE ROLAM E NÃO CRIAM LIMO
O ALBERT HALL TEM ESPAÇO PARA OS BURACOS DE JOHN


HOJE À NOITE TENHO QUE PARTIR
HOJE À NOITE TENHO QUE VOLTAR PARA CASA
HOJE À NOITE TENHO QUE ME DESPEDIR
HOJE À NOITE NÃO TENHO VONTADE
HOJE À NOITE NÃO QUERO IR
HOJE À NOITE JÁ SINTO SAUDADE





domingo, 9 de junho de 2024

CICLO

Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

Cuca, Vai embora, Acabou minha hora, Uma gota vermelha brilhante chamusca meu céu, Já não é mais papai Noel, Não venha me pegar, O papa-gente vem me buscar, Ele grita meu nome e me assusta, Pá-á-pá-santa-justa, Ele é ela que apanha meu último sono, É deus deixando-me no abandono, Rezo ave Maria, Todo dia, Rezo pai nosso, Mais que posso, Ele que é ela aparece de xandor, Conhece minha vida de cor, Minhas andanças, Minhas esperanças, Cuca, Se você vier me buscar, Só me leve para o mar, Se podes me ajudar, Peça a Moira Nona que teceu meu nascimento, Para deixar a intenção do Manjaléu cair na planura do rio do esquecimento, Que a Parca Décima adultere meu sorteio, E possa prolongar meu ciclo neste mundo de devaneio, Que a filha da necessidade Morta, Cegue esta tesoura abominável que o fio da minha vida ainda não corta.

quarta-feira, 5 de junho de 2024

A DEUSA DA ÁGUA FRIA


Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

O bairro da Água Fria é uma pequena galáxia situada no quadrante norte do universo de São Paulo. Seu núcleo é denso, um mar de vida singrado pela avenida homônima, que começa lá em cima, no alto de Santana, onde também começa a Avenida Nova Cantareira, e termina, de novo, lá em cima, no Barro Branco, aonde também chega a mesma Avenida Nova Cantareira. Só mesmo as dobras da teia do espaço curvado pela massa humana, pelo asfalto e pelo concreto podem explicar os encontros, desencontros e reencontros destas duas avenidas pertencentes a bairros distintos.
 
 
De 1959 a 1975, eu morei na ponta de um dos tênues braços espiralados deste pequeno aglomerado. O sistema solar onde eu morei tem um nome peculiar: Corneteiro Jesus. Todos os seus habitantes, desde os mais antigos até os de hoje, chamam-no, erroneamente, de Corneteiro de Jesus, fazendo os sistemas vizinhos pensarem que o nome se refere a um anjo que anuncia o retorno do mitológico discípulo do João Batista com uma trombeta. Jesus era um soldado do quartel do Barro Branco que, segundo a lenda, nunca  deixou de cumprir seu dever uma única vez sequer durante o seu tempo de serviço: soar sua corneta todos os dias às 5 horas da manhã para acordar o regimento.
 
 
Um sistema vizinho, a Rua Albuquerque de Medeiros, apelidada de Mombuca, era o nosso maior rival, ou melhor, rival somente da garotada no futebol. As teimas eram tiradas num território inexplorado e desolado, além dos limites da galáxia, chamado Carne Seca, considerado um campo neutro, mas, na verdade, era mesmo um reduto distante dos Mombuqueiros e dominado por eles. Hoje, imaginem vocês, o famigerado Carne Seca deu lugar ao refinado bairro Jardim França.
 
 
Mas o meu sistema não vivia só da rivalidade com a Mombuca. Tinha muita tradição e muita história. Jogos olímpicos eram disputados todos os anos, de Janeiro a Dezembro, à maneira dos Gregos, só pelos machos, mas não desnudados, enquanto as fêmeas tinham permissão para assistir só a alguns poucos jogos e de longe. Tinha época certa para cada tipo de modalidade: o jogo de botão com tampas de relógios que o saudoso Tio Chico trazia da famosa Casa Castro na Praça da República; os rachas de futebol no asfalto, com bola de borracha que ganhava a forma perfeita quando furava; o jogo de taco que, ao contrário do baseball americano, não permitia jogadores e assistentes tirarem uma soneca enquanto o prélio de 2 contra dois transcorria; as bolinhas de gude que estecavam outras para fora do triângulo, matavam palmo a palmo e a queima-roupa e se encaçapavam nos a boxes sob a terra; o roda pião na cela que cravava a couraça de madeira com um prego; a caça aos quadrados com cortante e a humilhação do adversário com a captura de seu papagaio em pleno ar; a caça ao balão para não ficar pagão, a guerra de estilingue com munição de mamona que ardia mas não matava; o jogo do abafa com figurinhas repetidas, desgastadas e descartáveis; a corrida de carrinhos de rolimã ladeira abaixo e muita ralação nos joelhos; o passeio de patinete, movido pelos pés como no tempo dos Flintstones. Estranhamente, as artes marciais eram sempre praticadas à noite, e sem a violência dos dias atuais: a mana mula e seus castigos pictóricos ao muar sorteado: amassa tomate, um bife e um batata, cortar salaminho, levar o burrinho para beber água, bombeirinho. Finalmente, balança caixão, uma fileira curvada, apoiada dorso a dorso, que recebia um tranco de dobrar a coluna, como Zorro saltando das alturas e caindo montado em seu cavalo.  Era estranho também que somente à noite os meninos se enturmavam com as meninas, e com elas praticavam alguns esportes amadores meio efeminados: amarelinha, passa-anel, cobra-cega e queimada. No entanto, até onde sei, não foi em razão do relacionamento com estas flores que algum cravo se tornou rosa. 
 
Já era época de acasalamento para os garotos, mas para as garotas eram apenas tempos de flertes, e, para mim, flertar era enviar um bilhetinho e, com sorte, conseguir um aceno de mão delicada à distância. Isso mudou com a inesquecível Márcia, que morava noutra galáxia, chamada Jardim São Paulo, e comigo estudou noutra ainda bem maior e mais distante, chamada Jaçanã. A Márcia me ensinou a namorar, a beijar e a me fazer imaginar o que eu poderia tentar com as três beldades mais cobiçadas do meu sistema. A Tânia era a mais provável, a mais liberal, aquela que, dizia-se, gostava de mim, mas ela raramente se aventurava além dos limites de seu planeta, onde ela nunca me recebia sozinha, mas só acompanhada de outras amigas. A Maria parecia impermeabilizada pela frescura e arrogância. Sempre pensei que ela usava estes escudos como mecanismo de defesa para sua insegurança. Enganei-me. Na verdade, ela era exigente e muito autoconfiante. A Lúcia era recatada demais. Ela parecia estar se preparando para entrar num convento de freiras. Enfim, jamais consegui arrancar um simples beijo, nem do tipo selinho, de qualquer uma das três. Pensei, então, que eu só fosse encontrar outras encantadoras alienígenas como a Márcia fora de minha Galáxia nanica.
 
 
Mas um dia, surgiu uma nova habitante nas imediações da Corneteiro. Uma garota linda, de 18 anos, dois a mais do que eu, mas com um olhar penetrante e sensual de mais de 21. Nem parecia  ser da minha espécie de tão adorável e atraente. Parecia uma deusa. Mesmo com toda aquela formosura, era humilde e discreta. Era pobre e precisava trabalhar para ajudar em casa, e logo arrumou um emprego na farmácia Santa Luzia, na movimentada Avenida Água Fria. Ela fixou residência perto da Maria e com ela fez amizade. Certa ocasião, surpreendentemente, a Maria veio ter comigo,  e me disse que aquela deusa queria conhecer o simpático turquinho que ela via passar pelo larguinho com sapatos brancos da Arco-Flex. Minha bela napa havia confundido a deusa, pois meu nariz não vinha da capital do império romano do oriente e nem mesmo da capital do império do ocidente de onde descendo por parte de pai. Ele veio do meu lado materno espanhol. Amor à primeira vista é sempre assim: nossa primeira troca de olhares selou o mais apaixonante e empolgante namoro que eu tive em toda minha vida. Por essa deusa, eu abandonei as olimpíadas diurnas e as brincadeiras noturnas, e passei a me dedicar mais à poesia e à música. Tornei-me um trovador.
 
 
Minha deusa fazia questão que eu fosse busca-la na farmácia todos os dias nos finais de tarde. De mãos dadas, começávamos a subir a Rua Altinópolis, lentamente, esperando a noite cair como um véu sobre nossa intimidade. Passávamos pela Rua Dr. Alcides Prestes e desviávamos para a Rua Gracianópolis. Para não expor nossa cumplicidade à Rua Casa Forte, muito próxima da Rua Marechal Fontoura onde a minha deusa morava, fazíamos outro desvio para a Rua Ismael Nery, e lá nos recostávamos sob uma árvore frondosa que foi testemunha das mais belas carícias e juras de amor. Voltávamos para casa sempre por caminhos separados, e nos fins de semana nos  reencontrávamos na casa da saudosa Dona Vera, que sancionou o nosso amor como uma juíza de paz, e fez de seu lar um ponto de encontro de todos os jovens do grupo local de sistemas.
 
 
Esta deusa poderia ter me ensinado outras coisas além dos beijos cinematográficos e dos abraços apertados, repletos de ternura, mas ela preferiu preservar o meu romantismo e o alimentou com palavras emblemáticas. Dizia que eu era seu 'marinheiro'. Inebriado de tanta paixão juvenil, eu não me preocupava em saber qual de nós estava empreendendo sua primeira viagem pelos complicados caminhos do coração, e retribuía sua sublime vivacidade feminina com poesias e canções. A minha deusa se encantava com meus escritos e meus cânticos e me estimulava a fazer declamações ao longo dos caminhos que trilhávamos juntos.
 
 
Num lindo sábado vespertino, com o céu rosáceo do sol poente, passeávamos pela Rua Florinéia, onde ficava o Grupo Escolar Expedicionário Brasileiro do qual recebi o meu diploma do curso primário. De repente, nos deteve uma agradável e distante melodia, vinda das cercanias, e que passou por nós como o efeito Doppler, se aproximando lenta e suavemente, depois nos arrebatando com sua estrondosa sonoridade e, finalmente, se distanciando gradativamente como os últimos raios de sol no firmamento. Eram os Beatles na voz de Paul cantando 'Você diz sim, eu digo não. Você diz pare e eu digo vá. Você diz adeus e eu digo olá'. Sempre que ouço ou apenas me lembro desta canção sou imediatamente remetido para aquele momento que nos deixou  estáticos e comovidos, pois nós não tínhamos ido ao encontro daquela canção. Ela que veio até nós. Só hoje compreendo que, embora 'Hello Goodbye' tivesse se tornado a nossa música favorita, ela nos procurou para nos dar um enigmático aviso. Naqueles dias, eu não entendia porque Paul precisava dizer a uma mulher: 'Eu não sei porque você diz adeus enquanto eu digo olá'.
 
 
Num domingo de matinê, a Maria veio ter comigo de novo, desta vez para me dizer que a deusa havia desmanchado o namoro por causa de sua mãe. Quando a Márcia mandou me dizer que nosso romance estava acabado por causa de seu irmão, eu senti um vazio enorme, mas não demorei muito para me refazer. Mas quando a minha deusa fez o mesmo comigo, o chão desabou sob os meus pés e me fez cair numa profunda fossa. Fiquei desesperado, desamparado, desorientado e sem forças para subir à superfície. Custei muito a voltar ao convívio habitual com meus amigos da Corneteiro e da Extensão do Jaçanã onde eu estudava até que, depois de muito tempo, consegui iniciar um novo namoro com a Rosa, com quem me casei, tive três filhas e de quem me divorciei depois de nossa festa de bodas de prata.
 
 
Eu tinha com a Rosa um namorico firme, mas eu não perdia um baile sequer da turma que conheci em outras galáxias. Num desses bailes, realizado nas proximidades da Rua Ismael Nery, eu saí para a sacada do sobrado para dar umas tragadas e bebericar uma cuba-libre ao ar livre (desculpem-me o trocadilho barato), e me surpreendi com a presença da minha  deusa no canto oposto do terraço. De longe, ela me viu e me acenou, e logo veio ao meu encontro. Já não me recordo quem a convidara para aquele baile ou mesmo se ela estava acompanhada. Ela me tirou para dançar e, em seguida, me chamou para um passeio. Eu lhe perguntei para onde e ela me respondeu: 'Nossa árvore está perto daqui'. Eu achei tudo aquilo muito casual, brusco e oportunista  demais. Não se coadunava com a preciosa paixão, caprichosamente lapidada, que tínhamos um pelo outro. Por isso, naquela noite, eu estava menos empolgado do que curioso. Menos emocionado do que ansioso.
 
 
No entanto,para a frondosa árvore, nada era fortuito ou inesperado. Para ela, tudo era sempre igual como as quatro estações do ano, e nós éramos uma delas que retornava com os mesmos acalorados beijos e abraços de verão aos quais ela se acostumara. O que aquela árvore jamais presenciara foram as lágrimas vertendo dos olhos meigos e sinceros da minha deusa, com uma voz embargada a suplicar-me perdão. Foi a primeira vez que eu vi aquela jovem mulher que eu endeusei chorar, dizer que sentia minha falta e que não poderia viver sem mim. Eu era ingênuo e simplório demais para minha idade e, muitas vezes, paradoxalmente, eu me comportava com uma fidelidade que se espera encontrar somente nos adultos. Eu cometi o sacrilégio de não assentir imediatamente ao pedido de minha deusa, porque eu estava comprometido  com outra garota. Ela não se conformou e levantou a voz contra mim. A última coisa que eu esperava da minha deusa era uma promessa de vingança. Eu não pude acreditar nas suas palavras e as atribui a um possível excesso de vodca no baile. Contudo, a minha deusa estava falando sério e sóbria, pois, na semana seguinte, ela bateu na casa da Rosa em plena luz do dia, chamou-a para fora e fez um grande escândalo por minha causa.
 
 
Comentar os desdobramentos daquele incidente seria uma injustiça à coragem, firmeza e determinação da minha deusa. Basta dizer que pouco tempo depois deste triste episódio ela deixou a Água Fria e nunca mais a vi.
 
 
Em termos astronômicos, essa deusa foi como um cometa desvencilhado das gravidades solares e que, nas suas andanças pelo universo de São Paulo, precisou fazer uma breve parada na galáxia Água Fria, mas seu brilho passou desapercebido por todos os habitantes, o que não pode ser justificado só pelo fato dela ter feito uma morada transitória nos confins desse pequeno agrupamento estelar, pois ela demorou-se o suficiente no seu populoso núcleo para ser notada. Talvez ela fosse uma deusa só para mim, mas que não pertencia a mim nem à Água Fria.
 
 
Se eu pudesse voltar no tempo, eu diria a ela que eu era muito medroso e muito fraco. Receava que meu frágil coração não resistisse a mais uma desilusão como aquela que tive com a Márcia, e agora com minha própria deusa. Talvez eu me sentisse mais seguro com a Rosa, que era mais tímida do que eu, mais conservadora, incapaz de empolgar, mas também incapaz de despedaçar corações de qualquer idade. Se você pegasse no meu pé como sua mãe pegou no seu. Se você chutasse o pau da minha barraca como você chutou o da Rosa. Se você soubesse como eu me abalava emocionalmente com tanta facilidade. Se você soubesse...
 
 
Como eu não posso mais voltar no tempo, resta-me dizer que a Avenida Água Fria nasceu ao lado da Avenida Nova Cantareira, e seguiu adiante, quase sempre em linha reta, sempre fiel ao bairro que leva seu nome, recebendo inúmeras ruas perpendiculares e serpenteadas, como um rio que acolhe vários afluentes, e sempre conformada com as delimitações de sua jurisdição. Já a Nova Cantareira tomou um rumo diferente, abriu um enorme leque para o leste, fez o Jardim São Paulo e a Vila Pauliceia abrirem alas para lhe dar passagem, perscrutou todo o bairro de Tucuruvi, se impôs como fronteira entre o Jardim França e o antigo Morro do Ademar, bateu de frente com o Barro Branco sem tomar conhecimento da Avenida Água Fria que ali se contivera, e voltou a se embrenhar pelo norte, deixando para trás a Vila Albertina e o Tremembé até chegar ao pé da serra que leva seu nome e faz fronteira com o universo de Mairiporã.
 
 
Talvez eu tenha sido a Avenida Água Fria, mais resignado e com expectativas mais limitadas, enquanto a minha deusa foi a Avenida Nova Cantareira, mais atirada, como um Ulisses instigado  pelo destino a sair em busca de odisseias e contemplar outros mundos. Coincidentemente, hoje resido na base da Serra da Cantareira, com a Cecília, minha esposa, e a pequena Ana Carolina, minha quarta filha. Mas minha deusa, eu não sei onde está.
 
 

Embora tivéssemos nossos corações partidos, tínhamos que nos manter ocupados para não nos transformarmos em inconsoláveis. Havia um monte de coisas que precisavam ser feitas. E só Deus sabe com que corações partidos tivemos que faze-las. Embora tivéssemos sonhos frustrados, tínhamos que nos manter ocupados porque não podíamos viver de sonhar um com o outro. Havia muitas coisas que precisávamos realizar. E só Deus sabe com que sonhos frustrados tivemos que realiza-las. E porque tínhamos lembranças recorrentes que nos deprimiam, tivemos que beber para esquecer um do outro, pois nos diziam que isto curaria o tempo adoentado, mas só Deus sabe com que tamanha depressão acordávamos de nossas bebedeiras. E porque ficávamos chorando o tempo todo, tivemos que cobrir nossas lágrimas com sorrisos forçados e seguir em frente como se estivéssemos recuperados, mas só Deus sabe quão sofridas têm sido nossas peregrinações pela vida, distantes um do outro, e com os nossos corações machucados.


A RESSURREIÇÃO DE TILLY POR ATENAS


Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 


Numa ocasião, o Mensageiro da Enganação convidou Tilly para ir a sua casa para ouvir música, bebericar e jogar conversa fora. Tilly achou que talvez esse fosse um bom momento para passar a limpo as lições preliminares e improvisadas sobre os discos voadores que não ficaram claras no primeiro encontro. Enquanto Tilly esperava uma deixa, o Mensageiro pôs um disco para rolar na vitrola com o volume baixo para não atrapalhar a conversa. Os ouvidos sensíveis e afinados de Tilly logo identificaram um som familiar e rejuvenescido que proporcionava uma sensação agradável e emocionante como ele nunca mais ouvira desde os tempos gloriosos do psicodelismo. Ele pediu para aumentar o volume e ficou todo arrepiado:
Quem são estes caras?
O Mensageiro respondeu que era o mais recente álbum do The Who, aquela banda que poderia ter sido a favorita de Tilly. Aquela que quando Tilly ouviu pela primeira vez o fez procurar seu amigo de adolescência e de panelinha e com quem formou uma dupla chamada The Two Flies.
Meu deus misericordioso e cheio de graça, apareceu um conjunto melhor que os Beatles.
O The Who havia passado pela vida de Tilly como um cometa que deixou um rastro de esplendor, mas nenhum voto de regresso, e Tilly não se deu conta da sua ausência no panteão dos grandes pop stars de tão ofuscado que ele estava pelo brilho do astro rei, os Beatles, por isso a falta de notícias sobre eles nos três anos seguintes passou desapercebida até o dia que ele ganhou de presente metade do seu mais recente e mais celebrado álbum e que ele aceitou com um ar de quem recebe uma caixa de lenços, pois naquela ocasião Tilly já havia deixado de ser um audiófilo para ser um borboleteiro.
Mas agora, sem saber, o Mensageiro havia devolvido a Tilly sua paixão pela música e a ela Tilly se entregou de corpo e alma para tirar todo o atraso e recuperar mais de uma década de descaso. Os Beatles haviam se separado havia muito tempo e Tilly os travestiu de cristo porque eles tinham talento de sobra para exortar uma banda tão quintessencialmente britânica como o The Who para tentar sobrepuja-los. Seria necessário muito tempo e muito aperto financeiro para adquirir todos os discos de catálogos, raridades, livros, revistas e vídeos do The Who e Tilly almejava desfrutar de cada aquisição lentamente como uma criança que saboreia um doce de bar. Tilly nunca deixou de ser um menino. Só trocou as calças curtas pelas compridas que serviram apenas para aumentar sua rebeldia, seu radicalismo e sua imaturidade. Aos olhos de uma pessoa desavisada, Tilly poderia passar por um garoto sábio e meticuloso que guardou todos os presentes de natal por mais de uma década e deixou para abri-los todos agora, na idade adulta, um a um, como um colecionador, sem perceber que ele queria ter pela frente muitos anos de brincadeira até enjoar.